No dia 01 de agosto, quarta-feira próxima, este blogue estará completando 03 anos de existência. Quero deixar aqui o registro e agradecer a todas as pessoas que o visitam, especialmente aquelas amigas e amigos que comentam uma ou outra postagem. O sucesso ou não do mesmo se deve, acredito que sim, a presença de todos vocês, embora tenha notado também uma assustadora queda nos comentários. Talvez muitos não tenham o devido tempo para visitas ou algo similar. De qualquer maneira fico muito grato aos que comparecem com suas gentis e carinhosas palavras. Verei até onde e quando poderei ir. O andamento dirá se devo permanecer ou não. Já tive vontade de encerrá-lo, mas a saudade foi maior e resolvi voltar no meio do caminho. Perdi muitos elos queridos, não sei a razão. Mas a vida é assim mesmo, se resume em acasos, casos, ocasos e descasos. O texto abaixo já foi publicado aqui em meados de 2004. Volto a repeti-lo para as novas amigas e novos amigos que surgiram neste espaço de tempo. Contudo, o poema é inédito.
INOCÊNCIA E SABEDORIA DE UM POVO
Saudável era ouvir o vaqueiro flagrar, narrar as coisas do dia-a-dia. Sobre a sorte de um indivíduo ser ou não abastado, falava: quem tem de ter tem que se dana; e quem não tem de ter se dana e não tem. Eram as fantásticas criações daquele homem fiel aos cuidados da fazenda. Histórias do sertão, da cidade, do sol e da lua. Histórias de um mar que não existia. E o sofrimento vivido na carne, a seca braba dos lugarejos, a vida de amarguras de um povo. Era um sujeito querendo aprender e apreender. Dizia ele, a Painhô, que a maioria trabalha e luta para a minoria saborear. E isso decididamente não estava certo. Contava tudo na simplicidade e candura que lhe eram peculiares. Misturava realidade versus ficção. Desabafava também: o homem humilde é honesto, na maioria das vezes. Cadê que eu tenho alguma coisa? Sou místico, religioso, mantenho fidelidade nos atos. Não tive meios para a instrução, mas sei de algumas safadezas... Ele, meu filho, continuou Painhô, exibia idéias exóticas, no entendimento de seu avô. Mas eram constrangimentos que saíam de uma vida atribulada, sem lazer nenhum. O único prazer que tinha era uma ruma de meninos pra criar. E como não podia ter controle para evitá-los, a casa ia se entupindo ano a ano.
A mulher, sempre servil, chegava à noite e dizia: vai precisar d'eu hoje, homem? Mas, cansado do trabalho, ele apenas respondia: hoje não, mulher. E ela, aliviada um pouco, comentava: então vou lavar somente o pé. Via-se, com isso, que não era uma pessoa que gostasse de muito asseio. Só quando ia satisfazer seu marido. E alimentá-lo de um sexo seco e bruto. Certa vez, filho, ele me contou uma estória comovente: na época dos festejos natalinos apareceu um vistoso homem numa dita comunidade. Então o dito sujeito olhou ao redor e viu verdadeiras aberrações. Crianças pobres comendo barro na lama e aquelas barrigas inchadas de vermes. E, de um outro lado, meninos ricos brincando em suntuosas casas com belos presentes. Eram, obviamente, famílias tristes x famílias alegres, pobreza x riqueza. Faces literalmente opostas. Portanto, ele perguntou: mas, o mundo não pertence a todos nós? E realizou um sonho na sua imaginação, tentando abreviar tal ocorrência calamitosa. A súbita transformação no utópico e alegórico aliviou a sua mente. Ele então pulou de felicidade. Era, lógico, a inocência falsa e quimérica de invencionices com sabor de verdade. Do quarto avistei a lua, perto da janela, disse meu pai. Gupiara tornava-se pródiga em noites assim, pena que a 'bola de encher' subisse rápido, não ensejando maiores apreciações. Ficou, então, deste tamanhinho, um tico de nada no céu. E depois uma vasta nuvem cobriu nossos desejos. As estrelas, os morros, o satélite. A cidadezinha lançou sua última visão. Mainhô e Tia Chica ressonavam. Eu idem, ainda na barriga de minha mãe, ufa! Painhô fechou a porta e Gupiara fechara novo dia.
ESPAÇO LIVRE
MORDACIDADE
De teu ventre saem as labaredas que apagam ambigüidades de um amor disperso.
Numa voracidade momentânea.
Bené Chaves
VERSOS QUE CANTAM E ENCANTAM (10)
De Noel Rosa e Heitor dos Prazeres: Um pierrô apaixonado Que vivia só cantando Por causa de uma colombina Acabou chorando, acabou chorando...
*
A colombina entrou num botequim Bebeu, bebeu, saiu assim, assim... Dizendo: pierrô cacete Vai tomar sorvete com o arlequim.
*
Um grande amor tem sempre um triste fim Com o pierrô aconteceu assim Levando esse grande chute Foi tomar vermute com amendoim.
Obs: Alguns versos de 'Pierrot Apaixonado'(1935), marcha que fez muito sucesso nos carnavais de 1936 e subseqüentes. A música foi gravada pela dupla Joel e Gaúcho, com o Heitor fazendo o estribilho e o Noel a segunda parte. Heitor nasceu no Rio de Janeiro em 23 de setembro de 1898, dedicando-se, desde mocinho, a tocar clarineta e instrumentos de percussão na Banda da Polícia Militar da cidade de origem. Depois também iniciou-se na pintura. Faleceu em 04 de outubro de 1966.
De Noel Rosa: Quando o apito da fábrica de tecidos Vem ferir os meus ouvidos Eu me lembro de você Mas você anda Sem dúvida bem zangada E está interessada Em fingir que não me vê... *
Nos meus olhos você lê Que eu sofro cruelmente Com ciúmes do gerente Impertinente Que dá ordens a você...
Obs: Alguns versos da música 'Três Apitos'(1933), onde o autor inspirou-se em uma namorada que trabalhava numa fábrica de botões em Andaraí, bairro do Rio de Janeiro. E tal composição causou uma confusão danada com outra fábrica que havia perto da casa do Noel. E ficaram sem saber quem seria a musa da música. Talvez por este motivo o compositor não gravou a mesma na época. Só viria a ser gravada em 1951, anos depois de sua morte, por Araci de Almeida, que reviveu Noel Rosa naquele início dos anos 50. O grande compositor de Vila Isabel nasceu em 11 de dezembro de 1910 e faleceu em 04 de maio de 1936.
ESPAÇO LIVRE APETITE
Sacio-te com piedade o amor transbordando numa ânsia orgástica a jorrar desejos ocultos.
Uma paixão que se deduz de um estágio em sofrimento.
E o instinto a palpitar uma breve e infinita ambição.
A de tê-la no meu corpo em redemoinhos na alma.
Bené Chaves
O texto abaixo foi publicado aqui em outubro de 2004. Ei-lo novamente para as amigas e amigos que não o leram não ocasião. E também para uma releitura do que já o conhecem, claro.
PARENTESCO DOS SÓIS Era domingo. Os canários do vizinho cantavam a valer, pombos voavam no telhado e, ao lado, num terreno baldio, meninos jogavam bola. Tia Chica preparava o almoço. Uma voz eclodiu da varanda: diga a preta velha que capriche, hoje estou com uma bruta fome! Mainhô apossou-se de uma cadeira e ficou a bordar um pano tingido. Certamente seria o seu enxoval, meu filho, que ela preparava com muito gosto. Painhô contou: no sertão, depois de um dia na enxada, sol pegando fogo, os homens voltavam pra comer tardinha do dia. Porém, como alguns não tinham suprimentos em casa, terminavam comendo a mulher mesmo, não literalmente, lógico. E, desse modo, o jeito era criar um bando de filhos. Foi Deus quem mandou, diziam as mulheres já prenhes. Só que esta historinha tava muito mal contada. Ferrões também tinha um belo anoitecer. No alpendre da casa de seu avô, continuava ele, a gente sentia o cheiro gostoso de queijo do sertão, manteiga, pão assado, aquela coalhada também de leite puro, fresco, tirado da vaca, madrugadinho. Ai Tia Chica lá...Aliás, a preta velha tinha preparado uma saborosa macarronada, dessas de deixar todo mundo com os beiços lambendo. Eu mesmo já estava sentindo aquele cheiro sem igual e doido para aproveitar o restinho na barriga de Mainhô. Mas, juntos, fomos nós, filho, degustar a tal comida já exposta à mesa. Tia Chica se enchendo de alegria, os olhos salientes de tanto deslumbramento. Aquela iguaria que fez nos deixou empanzinados, sua mãe tendo de abrir o chambre pra poder respirar um pouco, ufa! Quase que lhe sufocou, mas acho que você consumiu feito um guloso, não? O sol descia de posição e crescia também colado aos morros de Gupiara. Era enorme e um pouco desigual, se comparado ao seu parente de Ferrões. Tinha, em suas bordas, um acabamento como se tivesse sido feito com mãos de ouro. Fomos vê-lo sumir-se. A visão trouxe encantamento à cidade. Painhô, já descansado do vasto almoço, começou a dedilhar seu violão: Tava um dia no porto de AlagoasEncontrei tudo em bela condiçãoMais de cento e cinqüenta embarcaçãoEntre paquetes navios e canoasNa presença de mais de mil pessoasCom o barco alemão me agarreiQuando o bicho quis sair eu segureiNesse dia seu Minana criou famaO oceano ficou da cor de lamaMas o navio só saiu quando eu larguei. Meu pai disse que nunca estivera em Alagoas, mas não acreditei nessa história. Acho que ele andou aprontando pras bandas daquele cais junto com amigos boêmios. Esse imprevisível Painhô!... Bené Chaves
sexta-feira, julho 06, 2007 |
Novamente para os que não o viram e também para uma releitura, o texto abaixo, que saiu em setembro de 2004, vai aí republicado. Que todos tenham uma boa leitura. VIDA A DOIS
Minha mãe casou-se bem novinha, com apenas dezessete aninhos. Em plena efervescência juvenil. E comentavam que era uma moça linda. Parece que eu puxei a ela, pois falam que sou uma pessoa de belo porte. (Fico grato no que estas palavras dizem respeito a mim). Portanto, Mainhô estava em plena floridade, para usar aqui um neologismo. Naquele tempo era meio difícil as moças se aquietarem no lugar. O clima quente da região também favorecia tal comportamento. E ficavam logo com medo do caritó, praga que persegue algumas até na atualidade, o que é uma grande besteira. Mas, seria o costume de uma época. Painhô foi o contrário, divertiu-se quando solteiro e tinha vinte e oito anos quando casou. E isso porque ele inventou de 'bulir' com minha mãe. Azar ou sorte dele, não sei, ele que me conte depois essa historinha. Mas o termo 'bulir' era engraçado, porém em voga no período, disse-me certo dia. Se você 'comia' uma mulher, não usaria nunca esta palavra, pois seria uma aberração. Creio que atualmente não se 'bolem' mais com as mulheres. E todos devem saber o vocabulário certo nas suas conquistas. Existem inúmeras designações para tal uso. Meu pai me falou que algo lhe chamou a atenção no seu relacionamento com Mainhô. O algarismo seis. Pois, então, namoraram durante seis meses, casaram em um dia seis, tiveram seis filhos e até a igrejinha do casório tinha o número seis na sua fachada como identificação. Juro que vi este algarismo pregado na parede, dizia ele. Na época proibiam tudo, comentou minha mãe.Você sabe, meu filho, cidade com menos gente o falatório corre solto. Porém, as desgraças só acontecem no dia. Era jovem, podia ter aproveitado melhor a idade. Sei que o tempo não espera nada. E seu pai apareceu naquela hora. Quando chega o momento, tudo se revela e não se revela, pois a existência sabe e dita as mudanças, dizia ela, meio filosofando. A lua surgiu e iluminou o terraço. Longe dali, mulheres e homens saíam às ruas para olhar o bonito anoitecer. Gupiara enfeitou-se. Ficavam todos com cadeiras e redes nas varandas e se deliciando com o crepuscular acontecimento. Tia Chica gritou da cozinha que a janta já estaria servida. Painhô depois apenas observou a lua diminuir de tamanho. As ruas ficaram escuras, ouvia-se o zumbido das cigarras e as sombras das árvores afugentavam poucas crianças que brincavam ao derredor. Ele me disse que se fixou no horizonte e sentenciou: o que existe mesmo é uma mistura de misticismo versus ceticismo. A vida é uma mesclagem!, falou interrogativo, como se estivesse conversando somente para si. Sei não porque Painhô disse isso, mas pareceu-me que nesta noite, a exemplo de Manhô, ele também estava querendo apenas meditar sobre nossa existência. ESPAÇO LIVRE O poema abaixo faz parte do livro 'Cinzas ao amanhecer'(Sebo Vermelho, 2003) e já foi publicado aqui em meados de outubro de 2004. Espero que ele proporcione de novo uma boa leitura.
TEMPORALIDADE
Na breve existência este seu rosto tem a sua idade também a suavidade do resto que vi de ti. No seu belo corpo a efemeridade de um triste porvir.
A da velhice por vir.
E a morte para ti.
Bené Chaves
|