Mais um texto que foi publicado aqui em agosto de 2004. Para os que não o leram, evidentemente, e também para os que quiserem fazer uma releitura. AS EMBOLADAS DE PAINHÔ
O lusco-fusco de Gupiara encantava a todos. Do alpendre largo meu pai se aconchegou com minha mãe e foram olhar a hora do crepúsculo. A noite ficou quieta e a espontaneidade fluiu. Na cozinha o cheiro da arte exemplar de Tia Chica. E meu pai com gáudio no rosto, minha mãe também. Longe dali, folhas secas caíam grudando na bosta das vacas que pastavam distraidamente. Enquanto a preta velha servia o leite gostoso e espumoso, aquele arroto ia saindo com satisfação. Por cima e por baixo. Painhô, então, levantou-se e voltou ao terraço, colocando a rede nos sujos armadores. Viu dali, deitado, a enorme lua que surgiu dentre os morros. Ela quase roçando seu rosto. Ficou extasiado com a bonita paisagem. Gritou pedindo o violão e convidou as duas mulheres para o ouvirem cantar. Acho que Gupiara escutou também aquele chamamento. Moveu as duas mãos e iniciou as modas:
Menina dos olhos d'água Me dê água pra beber Não é sede não é nada Só vontade de te ver.
Afinou o estribilho na segunda pauta:
Ai céu céu céu Ai céu sereno Ai céu me leva Para os braços da morena.
Enquanto minha mãe saía um pouco, talvez pra tomar água, não sei, meu pai aproveitou sua ausência e sapecou baixinho:
Mulher casada Que duvida do marido Toma a mão no pé do ouvido Pra deixar de duvidar.
Mas, quando ela voltou, procurou agradá-la. Painhô era assim, cantava o momento, de acordo com suas conveniências:
Homem casado Beliscou mulher dos outros Pode-se dizer morto Na ponta do meu punhal.
E, olhando, de soslaio, para a mulher, inventariou outra moda, claro, tocando com entusiasmo:
Mulher de vergonha Não se meta em beliscada Seja fiel ao marido Senão fica atrapalhada.
Ao longe, alguns pampas relinchavam e um ruído estranho estendeu-se no matagal. Tudo ali era livre, belo, sadio. Mas, no fundo, sentia-se uma falta de esperança ao se olhar o horizonte, as plantações ressequidas, o povo sempre sofrido, a água escassa. Painhô levantou da rede, calçou os chinelos e puxou o violão pra debaixo de um braço e a mulher pra debaixo do outro. Não sei não, mas, toda vida que meu pai ia cantar, despertava-lhe uma fome diferente, acho que de sexo. Ele me contou depois que foi dormir, mas tenho em mente que era apenas uma força de expressão. E ele ia lá dormir numa situação daquela!...
ESPAÇO LIVRE POEMINHA CASTO
A virgem cor de mel com seu maiô de cetim brinca na areia salgada bem juntinho de mim.
Quero afagá-la, seduzi-la feito isca no anzol na melodia do mar catando caracol.
E na sua graciosa beleza de mãos dadas a ela mergulho na incerteza.
Bené Chaves
VERSOS QUE CANTAM E ENCANTAM (6)
De Cândido das Neves:
Noite alta, céu risonho A quietude é quase um sonho O luar cai sobre a mata Qual uma chuva de prata De raríssimo esplendor...
*
Lua! Manda a tua luz, prateada, Despertar a minha amada Quero matar os meus desejos Sufocá-la com meus beijos.
* Canto, E a mulher que eu amo tanto, Nem me escuta, está dormindo... Canto, e por fim... Nem a lua tem pena de mim Pois ao ver que quem te chama sou eu Entre a neblina se escondeu...
Obs: Alguns versos da música 'Noite cheia de estrelas' (1932), do cantor, compositor e violonista Cândido das Neves e gravada originalmente por Vicente Celestino no mesmo ano. Cândido era filho do célebre trovador e palhaço Eduardo das Neves, conhecido por Nego Dudu, um dos primeiros artistas a registrar discos no Brasil. Nasceu no Rio de Janeiro em 24 de julho de 1899 e morreu também na mesma cidade em 4 de novembro de 1934.
De Armando Vieira Marçal e Alcebíades Barcelos:
Você partiu Saudades me deixou, eu chorei O nosso amor foi uma chama Que o sopro do passado desfaz Agora é cinza Tudo acabado e nada mais.
*
Você partiu de madrugada E não me disse nada Isso não se faz Me deixou cheio de saudade E de paixão Não me conformo Com a sua ingratidão.
Obs: Alguns versos de 'Agora é cinza', música lançada nos ensaios da Escola de Samba Recreio de Ramos para o carnaval de 1933, com o título de 'Tu partiste' e depois modificada para o nome atual. Marçal nasceu no Rio de Janeiro no dia 14 de outubro de 1902 e morreu em 20 de junho de 1947, enquanto o Alcebíades (Bide) nasceu em Niterói em 25 de julho de 1902. Morreu quase cego e paralítico em 18 de março de 1975 no Rio de Janeiro. No mesmo ano em que a música foi eleita por um júri como 'o melhor samba de todos os tempos'.
ESPAÇO LIVRE O poema abaixo foi publicado aqui em outubro de 2004 e faz parte do livro 'Cinzas ao amanhecer'(Sebo Vermelho, 2003). Trago-o novamente para as pessoas que não tiveram oportunidade de vê-lo. E que tenham uma boa leitura
DIVERSIDADE Ah, as mulheres!...Meu patrimôniomorenasloirasbrancasnegras.Meu matrimôniovirgem carentemoça potenteoutra insolentemulher presente.São acasos e ocasos da mente? Bené Chaves
O texto abaixo foi publicado aqui no dia 09 de agosto de 2004. Resolvi colocá-lo novamente para as amigas e os amigos que não leram na ocasião. Mas, o poema é inédito. Tenham uma boa leitura.
O CASAMENTO
Meu pai foi, então, morar em Gupiara. Depois daquele chamego com minha mãe, a barriga dela começou a crescer. E o falatório também. Para evitar maiores constrangimentos, apressaram o casório. Somente assim os fuxicos parariam, embora o ventre dela não pudesse fazer o mesmo. Teria, portanto, de esperar nove ingratos e enjoados meses. E lá foi ele providenciar tudo na única igrejinha de Gupiara. O padre da mesma avexado na conclusão dos trabalhos. A barriguinha dela, ixe!, roncando e resmungando. Logo logo arrumaram os trapos e foram morar juntos. Enquanto a noite clareou aquele largo alpendre, os grilos entoavam zumbidos desconcertantes. No ar o silêncio de todos nós. As árvores balançavam com o vento forte e cresciam mais barulhos nas matas. Passarinhos juntavam-se em galhos murchos começando cantos agradáveis. A imensidão do descampado, naquela área suburbana, não deixava margens. Tudo ali era e não era, no semi-árido grande e ressequido. Diziam ser meu pai um sujeito inteligente, sabido, conhecedor da vida e das coisas inerentes a ela. E tocava um violão de fazer inveja. Quando a lua voltou a crescer, ele improvisou pequenos versos no aconchego daquele espaçoso alpendre, soltando sua voz vigorosa:
Só não vou na sua casa Porque tem muita ladeira Os cachorros latem muito Sua mãe é cavaleira. Falava que tal 'quadrinha' era pros rapazes com medo da possível futura sogra. Caía, então, na gargalhada. E com o estômago redondinho de depois da janta saborosa da recém-esposa, continuou suas modas envaidecido que só: Rapaz solteiro Namorou mulher casada Tá com a vida atrapalhada Na ponta do meu punhal Parava depois, emitia três ou mais sons e corria livremente o estribilho: Ô mulher sai do sereno Ô mulher sai do sereno Qu'este sereno faz mal.
Minha mãe começou a alisar o cabelo dele e ele sentiu um friozinho de arrepio pra banda do cangote. Largou de imediato o instrumento musical, pegou-a pelos braços e danou-se certamente para o quarto. Aí nem me perguntem, pois não sei mais o que aconteceu. Deve ter acontecido sim...
ESPAÇO LIVRE
ETAPAS Nos meus olhos de infância eu brincava contigo.
Nos teus olhos de adolescência tu brincavas comigo.
Nos nossos olhos da razão já não brincávamos.
E ante a adversidade do tempo éramos dois seres a contemplar o ocaso e o acaso da existência.
Bené Chaves
VERSOS QUE CANTAM E ENCANTAM (5)
De Ary Barroso e Lamartine Babo:
No rancho fundo De olhar triste e profundo Um moreno canta as mágoas Tendo os olhos rasos d'àgua.
*
Os arvoredos Já não contam mais segredos E a última palmeira Já morreu na cordilheira.
*
Os passarinhos internaram-se nos ninhos De tão triste essa tristeza Enche de trevas a natureza.
*
Se uma flor desabrocha E o sol queima A montanha vai gelando Lembrando o cheiro da morena.
Obs: Alguns versos da música 'No rancho fundo', de 1931, composta inicialmente com o nome de 'Na grota funda' e letra de J. Carlos para a peça 'É do balacobaco'. Na apresentação da mesma, Lamartine Babo ficou tão impressionado com a música que resolveu mudar os versos e deu o definitivo nome. Surgia, então, a parceria entre os dois compositores. Ary Barroso era mineiro e nasceu em 07/11/1903 em Ubá, enquanto o seu mais novo companheiro nascera no Rio de Janeiro no dia 10/01/1904. Ambos faleceram na cidade maravilhosa. Divergiam, contudo, no futebol, aonde o Lamartine Babo chegou a compor diversas músicas para os clubes cariocas. Enquanto o Ary era flamenguista doente, o Lamartine simpatizava com as cores do América.
De Noel Rosa e João de Barro (Braguinha): A estrela Dalva No céu desponta... E a lua anda tonta... Com tamanho esplendor E as pastorinhas Pra consolo da Lua Vão cantando na rua Lindos versos de amor.
* ... Tu não tem pena de mim que vivo tanto com o seu olhar ... Meu coração não se cansa de sempre sempre te amar.
Obs: Alguns versos da música 'As Pastorinhas', quando em uma mesa de café, no final de 1934, o então jovem Braguinha propôs ao Noel Rosa: 'Noel, vamos fazer uma música com aquele ritmo das pastorinhas que desfilam em Vila Isabel na noite de Santos Reis?'. Pediram lápis, papel e cafezinho. E em pouco mais de meia hora elaboraram 'Linda Pequena' com participação de ambos na letra e também na melodia. Depois de algumas mudanças ficou o nome de 'As Pastorinhas', que foi gravada por Sílvio Caldas no final de 1937. É até hoje um grande sucesso de carnaval e público, bote aí mais de 70 anos nas costas.
ESPAÇO LIVRE
VERSINHOS DE AMOR Queria amá-la mas não posso. Por quê?
Queria abraçá-la porém não te vejo. Por quê?
Queria beijá-la mas estás ausente. Por quê?
Queria seduzi-la porém não sei como. Por quê?
E, sobretudo, queria muito possuí-la. Por quê?
Porque aprendi a gostar de você.
Bené Chaves
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