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Bené Chaves <>, natalense, é escritor-poeta e crítico de cinema.
Livros Publicados:
a explovisão (contos, 1979)
castelos de areiamar (contos, 1984)
o que aconteceu em gupiara (romance, 1986)
o menino de sangue azul (novela, 1997)
a mágica ilusão (romance, 2001)
cinzas ao amanhecer (poesia, 2003)
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quarta-feira, outubro 26, 2005

TRIGÉSIMOS SEXTOS ALUMBRAMENTOS



As moças de Gupiara, ainda encabuladas, acredito que sim, mas cheias de sedução, levantavam as mãos até a face e simbolizavam enternecimento ou timidez, a música solta tentando desinibir seus desejos. Então, quando um jovem as encarava, elas fingiam contração e encenavam, parecendo serem boas atrizes, abaixando suas cabeças e enfiando-as dentro das largas saias compridas. Depois, subitamente arrependidas, erguiam as mesmas e enfrentavam o também tímido mancebo ainda as esperando silencioso e sôfrego. Os outros, vendo tão aguardada cena, acudiam rápidos e logo a seguir todos estavam emparelhados com as ditas donzelas. Elas tinham sido derrotadas na presente competição. E, simplesmente, naquela deliciosa peleja, se deixavam entregar, óbvio, no bom sentido. Aí, portanto, ocorria a junção dos corpos com brandos escorregos e requebros melodiosos... O salão era uma festa só, com os casais já todos desinibidos a desatarem seus ímpetos anseios no intuito de conseguirem os pares pretendidos.

Assim eram as meninas-moças de uma época que se foi, como da mesma forma os rapazes. Desse modo não são mais as ditas meninas-moças e os jovens atualmente. E também os homens e as mulheres de um modo geral, pois as situações se modificaram e os rumos tomaram novos prumos. Apagaram-se as supostas inocências e acenderam-se as não supostas libertinagens, na acepção própria da palavra. Tudo eclodiu, foi embora, bons anos que somente hão de ficar como uma saudade e outra ilusão. E com aquele gesto ingênuo, (quase) proibitivo, lógico, uma sensualidade que despertou um calor veemente e a libido da juventude. De nossa juventude. As facilidades atuais e também mercantilistas tiraram muito de um glamour existente no período. O da não fácil conquista, arrebatamento, sedução... Era a nossa insuflação de momento.

Sem dúvida que os rapazes (e eu no meio deles, claro) fingiam não adorar, mas depois se encantavam dos trejeitos meio maliciosos, sutis e aparentemente inocentes das púberes mocinhas. E elas também não ficavam atrás nas metas determinadas. Tudo, então, seria o fim de mais uma década que celebrava uma talvez e doce candura. As coincidências da vida, seus encontros e desencontros fizeram-me entender um pouco de cada ser humano, suas vicissitudes e anseios. Foram conhecimentos adquiridos no curso de uma ainda curta existência, porém desejando criar e posteriormente colher frutos sadios para a continuidade da mesma. Ou, quem sabe, poderiam ser, além disso, raízes de uma casual e antepassada circunstância.

Algumas pessoas ficaram alheias a um convívio salutar e isso se deveu, talvez, até pela falta de uma vivência direcionada para tal fim, como a estímulos estilhaçados e outras ocasionalidades evidenciadas no fluxo de uma vida. E pode ter sido também por uma índole que já viesse anos inimagináveis com sua rudeza secular.

ESPAÇO LIVRE


PRINCÍPIO

Na aurora cinzenta e fria
de um crepúsculo existencial
a morte a nos perseguir
e a velhice intolerável a vir
em ventres formados e deformados
úteros e cavidades envaidecidos
vomitando seres inocentes
no vazio de uma vida.

Entre um oposto e outro
a esperança efêmera
de uma ocasionalidade perdida.

Bené Chaves



quinta-feira, outubro 20, 2005


Este conto faz parte do livro A Explovisão, lançado no distante ano de 1979. Fiz modificações necessárias e alterei alguns trechos, deixando-o menos longo.Compartilho com vocês e espero que tenham uma boa leitura.

VIDA, VIDA...


Deitado em uma cama estava um senhor de média idade. Gemia uma dor contínua. E ao redor pessoas falavam entre si com palavras entrecortadas ao som de um pequeno aparelho colocado na lateral. O homem estirado no sujo hospital parecia relegado à própria sorte. Ou ao próprio azar. Sua vida em frangalhos. Contorcia-se na ilusão de uma existência a se esvair. O silêncio a não ser respeitado, conquanto comentários eram feitos no cubículo de dimensões limitadas. Aproximei-me da cama e olhei para os olhos do cidadão. Sabia que não reconheciam ninguém. Aqueles próprios olhos tão vivificantes meses atrás. Apenas se enchiam de lágrimas, umas lágrimas de despedida no ambiente entupido da curiosidade alheia. O triste quadro exposto à visitação. "A vida é uma merda, como é lamentável a morte, um total desengano...", se desesperavam alguns da família. E o doente respirando com dificuldade, o balão de oxigênio perdendo efeito, valia. "Tá morrendo... Tá morrendo...". Um rebuliço sufocou o corredor do sujo hospital e todos se acotovelaram na indiscrição.

Lá fora a noite estava sombria. Nuvens esparsas sobrevoavam um céu opalescente. Existiam poucas estrelas, presumia-se que iria chover. O clima nostálgico e frio deixava o ambiente mais lúgubre. Saí do quarto e disseram lá de dentro: morreu! Segui pelo corredor com um nó na garganta e pensei: "tudo se acaba como um sopro, como uma vela derretendo-se". Cochichos rodeavam a cama e pessoas se olhavam perplexas. O ilustre cidadão que um dia recebeu flores quando nasceu, também o estava recebendo na sua morte. Era a dualidade dos opostos. E, depois disso, então, os dias amanheceram menos alegres...

Sei que a existência deve-se a um ato de prazer e violência. Possuímos, evidente, uma dose de tudo, pois o brutal está em nós. Falava e falava meio tonto, caminhando entre árvores secas, chamuscadas. Olhava-me a cada instante como se ali estivesse um espelho a projetar sua luz. E no meio uma multidão apareceu subitamente e pareceu-me revoltada, queria uma vivência eterna e terna. "O homem não suporta a velhice e nem a morte, somos contra tal imposição, o nosso coração e demais órgãos são uns assassinos", concluíam em debates e gritos. Atiravam pedras para o alto e apontavam armas para cima e disparavam. Depois faziam desenhos de peças de artilharia em papéis e urravam desesperados dando a impressão de desafiarem a Morte. Queriam uma guerra contra a mesma. Nem que fosse uma batalha de fantasia, brinquedo ou faz-de-conta.

Caminhei por uma rua estreita, estava meio alheio e entrei numa casa velha e enlameada de mau cheiro. Sentei-me na areia e estirei as pernas na água borrifada. Vi um rapaz olhando-me desconfiado dizendo que tentava também dormir. Na verdade, sabia, estava sendo jogado contra a imundície de uma vida. Pensei nos homens que lutavam por uma vida eterna e torci para que a vivência de alguns (poucos) não servisse em detrimento da sobrevivência de muitos. Disse algo sobre o cidadão que vi morrer e apodrecia igual àquele lugar. Apenas ossos em forma de gente, nada mais. Gritei: "você um dia foi gente!". Falei que o homem criava mitos pelo medo que tem de tudo. Então ele tem medo de sua própria criação e, obviamente, de si mesmo.

Voltei ao hospital. Vi a mesma cama vazia à espera de novo paciente. O ciclo continuava e se estabelecia. Ao redor enfermeiras me cumprimentavam em silêncio. E do lado de fora uma tempestade invadiu e balançou o prédio como faz com um coqueiro. Folhas agrediam as janelas de vidros embaçados. Corri e apelei para todos: "vão embora, vocês não estão doentes, tudo é uma farsa, todos estão bem de saúde, saíam, de pijamas, cuecas ou nus, porém saíam. Gritem, cantem..." Entrei no quarto de despejo e peguei um enorme livro já amarelado. Pedi que aquelas pessoas assinassem, no estranho registro, uma petição contra a Morte. E todos começaram a cantar: vida, vida... Um velhote se vestiu animado e botou as malas no braço. Outros o seguiram. A fila aumentou em um pulo só. Abriram caminho e enfrentaram o vendaval menos árduo.

As luzes se apagaram e o ambiente silenciou. Os quartos já estavam dormindo. Apenas eu acordara naquele momento. Estava todo molhado.



sexta-feira, outubro 14, 2005

TRIGÉSIMOS QUINTOS ALUMBRAMENTOS


E com Gupiara no encalço de ruinosas figuras vi-me estudando em curso superior e atarefado o suficiente para quase interromper outras atividades, principalmente as relacionadas com as meninas-moças da época. Tinha de estudar com afinco e adiar festinhas de fins de semana. Antes disso, porém, lógico, fui aprovado no vestibular de Farmácia e Bioquímica e reprovado no de Medicina, ambos feitos no mesmo período. Mas com a promessa aos meus pais de realizar novo exame ano seguinte, pois desejava muito cursar Medicina e me especializar em Psiquiatria. Via, com isso, uma possibilidade de tentar ajudar mentes perturbadas em um mundo de inquietações e também sofrimentos. Um mundo que a cada dia se tornava mais louco. Não consegui, contudo, realizar meu sonho de infância, porém, uma irmã minha, dois anos após, foi aprovada para exercer o que tanto idealizei.

Curioso é que, no trote dos calouros, ela sairia às ruas com as colegas, charangas e muita badalação para festejar a aprovação de todos. E numa suposta inocência que lhe era peculiar. Na época, o fusca era o carro mais vendido e popular. Aconteceu de colocarem em um cartaz palavras alusivas ao mesmo, numa referência maliciosa às tão badaladas garotinhas da sociedade. Estava lá escrito em letras graúdas: "Certas moças do society são como o carro da Volks, isto é, só tem potencia na traseira". E com erro de português e tudo. Na pressa, esqueceram de colocar o circunflexo na palavra adequada. Belos formandos, hein?

Mas, fazia-se alusão ao automóvel cujo motor é na parte de trás, já que o falatório usual inteirava de que algumas menininhas gostavam mesmo era de serem enrabadas. Daí o alarmante vaticínio para uma Gupiara ainda em crescimento. Certamente porque, de outra forma, havia o risco de engravidar, pois supunha-se que os preservativos, se é que existiam, não teriam a mínima segurança. Ou, então, em último caso, uma tara de algumas donzelas da cidade. E o que foi muito pior: botaram minha irmã para carregar tão picante anúncio. Com a agravante da mesma não imaginar o que estaria escrito no indiscreto cartaz. Ela, na sua talvez ainda inocência, apenas seguia caminho com outras colegas e outros anúncios, a sacudir e mostrar o que segurava nas mãos na cândida presença também de freiras carmelitas que a tudo assistiam. Imagino aqui o horror das religiosas do Colégio Imaculada Conceição em que ela terminara o curso. Que intenção maldosa dos que escreveram tais mensagens, não?

Mas, enquanto Myrna (nome dado em homenagem à atriz Myrna Loy e de que Painhô tanto falara da mesma nas suas inúmeras idas a um cinema próximo) cursava Medicina, ocupava-me das químicas da vida iniciada antes e podendo depois avaliar o quanto seria importante um dia me graduar tendo o diploma no fim de quatro anos. Feito isso, seria um doutor, com tudo de direito ou errado. E nada impediu, todavia, que vez ou outra fosse a um clube, já que sentia uma falta medonha de um bom sarro no meio daqueles festejos. As meninas que o digam, eu que afirme corroborando. Elas no acanhamento natural, mas, paradoxalmente, ávidas em conseguir um bom dançarino. E, então, ficavam ali no miolo do salão esperando algum rapaz afoito que as chamariam para uma boa dança e requebros.

Gupiara, portanto, aos poucos, ia perdendo também sua inocência, sua timidez. Os próprios rapazes, já crescidinhos e as moças, não sei se tão moças assim, tiravam-na de um arrefecimento de cidade pequena. Seria uma espécie de desregrada evolução tomando pulso de seus arredores.

ESPAÇO LIVRE


MELHORES FILMES ROMÂNTICOS DOS ANOS 50

·
Um lugar ao sol (Stevens,1951)
· Depois do Vendaval (Ford, 1952)
· Monika e o desejo (Bergman, 1952)
· A princesa e o plebeu (Wyler, 1953)
· Sedução da carne / Senso (Visconti, 1954)
· Noites de Paixão (Mattsson, 1954)
· Sabrina (Wilder, 1954)
· Lola Montés (Ophuls, 1955)
· Férias de amor / Picnic (Logan, 1956)
· Um rosto na noite (Visconti, 1957)
· Amor na tarde (Wilder, 1957)
· Os amantes de Montparnasse (Becker,1957)
· Quando voam as cegonhas (Kalatosov, 1957)
· Corações em suplício (Kautner, 1958)
· Os amantes (Malle, 1958)
· Hiroshima meu amor (Resnais, 1959)
· As ligações amorosas (Vadim, 1959)




Bené Chaves






sábado, outubro 08, 2005

TRIGÉSIMOS QUARTOS ALUMBRAMENTOS


Naqueles tempos, minha-nossa-senhora, as belas atrizes não apareciam nuas, apenas alguns relances de sensualidade e nada mais. Seria uma temeridade se assim o fizessem, coisa mesmo da época, de uma censura austera e ainda conservadora. Quando muito, um bonito colo a revelar seios generosos ou umas coxas grossas descobrindo boa parte de um corpo tipo violão, como se dizia. Mesmo que fosse às escondidas. E a atriz Kim Novak fazia-me deslumbrar com suas curvas delineadas a quase sempre ir a um banheiro próximo, eu aí nos meus treze ou quatorze anos de inexperiências e ansiedades. E olhe bem que não via um terço das partes pudendas de tão encantadora mulher. Minha euforia maior seria admirar suas lindas pernas e o rosto sutil, um misto de ruivo, loiro e moreno. Então, inchava de prazer e contentamento. Também pudera!... Também pudera!

No período em vigor pude avaliar o quanto teria levado adiante tal questão, visto que denotava, desde já, meu desconcertante - e lógico - relacionamento platônico. Portanto, naquele intervalo, parece, da adolescência (ou antes?), me concentrei numa ilusão de que tudo poderia um dia se tornar verdadeiro. Ou, então, mergulhar de vez na fantasia iniciada. De qualquer maneira me valia do único meio que existia no momento, uma possibilidade não palpável, porém repleta de indiscutível magia. E creio que fiquei parcialmente feliz porquanto vivia uma fábula materializada por um desejo sublimado e impossível. Daí, os ralos dos banheiros se encher de um apetite lascivamente impedido.

Diante do exposto, concluí que tinha lá minhas razões. E, modéstia à parte, ficava admirado com engenhosidade deveras peculiar, sabedoria e esperteza mesmo da juventude, do que seria belo e inesquecível. É sabido que sempre demonstrei tais características, nascidas talvez de um gene especial, ao contrário do que já abordei aqui, na ilustração de uma ancestralidade e conseqüentes hereditariedades não desejáveis ao ser (dito) humano. Lógico que toda regra tem suas exceções, mas a maioria era assim mesmo, abarrotada de incoerências porque fruto de uma mistura cada dia aumentada.

E nesse quadro paralelo Gupiara seguia, a contragosto, sua trajetória equivocada, quando os mandatários tocavam obras superficiais apenas com o intuito de vê-la crescer, crescendo, contudo, dívidas enormes que, no futuro próximo, sobravam para a população. Débitos estes feitos através de algo ordenado ou contribuições alteradas. E o principal não era realizado, pois se faziam mais contra-obras do que propriamente um empreendimento em favor dos necessitados, prejudicando o trabalho social que deveria ser colocado em prática. Depois - nem sempre - apareciam as danosas conseqüências dos desvios, sem se saber, no entanto, onde os mesmos foram enfiados.

Porém a minha outrora cidade querida, de tempos bons, áureos caminhos da inocência perdida, seguia seu rumo e nada a detinha. Pareceu-me que iria se tornar, a cada passo, numa Gupiara inexistente e insensível. Uma Gupiara alheia aos anseios de um povo cada vez mais sofrido, de um povo vivendo às margens de uma sociedade no natural individualismo que lhe cabia. E chegando também ao vexame de nada criar e somente copiar, em um gritante contra-senso e uma desenxabida vulgaridade. Inclusive com uma população alheia aos verdadeiros motivos da desonra impetrada. E tudo era feito seguindo impulsos de urbes desenvolvidas.

ESPAÇO LIVRE

CLEMÊNCIA



Ao olhar da vida
a rotina que dilacera
os odores e (dis) sabores
o grito que desespera.

E o contundente apelo da
desalmada fuga de si mesma.

No ouvido sussurro-lhe:
foge dos fantasmas
ouve os murmúrios
ouse quebrar desencantos.

Amanheças no amanhecer!

Bené Chaves



domingo, outubro 02, 2005


Este conto faz parte do meu livro Castelos de Areiamar (1984). Fiz algumas modificações para se encaixar no espaço do blogue e também para não ficar longo como no original. Alguns trechos foram omitidos, mas creio que o essencial foi preservado. Compartilho com vocês e espero que tenham uma boa leitura.


DORREMI


Foi numa fazenda, perto de um lugar conhecido como Pinga-Pinga, formoso e cheio de encantos. Ali ficava a velha casa, senhora de todos os pequenos trilhos que passavam rasteiros pelo caminho úmido e pastoso. Lugar quieto e bonito.
Ele se chamava Ofrônio, pelas palavras da própria boca. E dona Zuzu buliçosa, cuidava e dava moradia bem-bem ao seu homem. No mais das vezes, aquele vaqueiro tratava do todo, fazia o que tinha de fazer. Não ligava para o resto do pessoal azucrinando sua vida, dizendo inverdades. Era e foi, sem ressentimentos. Um zangaralhão! Macharrão!
Dia-a-dia cuidava do gado e o alimentava com disposição, não temia, era um morador de mão cheia. Tudo por tudo, tava satisfeito. Os meninos eram cinco, crescidos e acostumados naquela vida de beira de rio, gostosa, gostosa... Um ribeirinho! Colosso! Dois trabalhadores bastavam, tinha dito um dia o chefe. Quando podia, se deslocava, ia apanhar dinheiro e vistoriar as desconfianças. Descia em feriado, seria preciso ficar na cidade grande e julgar suas posses, prevenir-se. Aí sim, aparecia no rancheirão de léguas. A família o acompanhava para aproveitar o que bem quisesse. Ficavam livres... Gostosura de vida!
Ofrônio, homem valentão e fiel, levantava às madrugadas para reparar e vigiar as coisas da fazenda, tudo pertencente ao dono. Atarefado e matutão! A mulher executava sua parte: entre outras tarefas também cozinhava que era uma beleza, principalmente sabia preparar e com leite puro uma coalhada que comíamos com os beiços, puxa!, não gosto nem de pensar. Aqueles dias eram futurosos, de barrigas cheias. Depois entupíamos sanitários, fazíamos fila... Eita lugarzão bom esse, de ares, modos!
Dona Zuzu não era chegada em desconhecimentos não, queria o marido no aprendizado. Bem que tentava pouco esclarecer o muito despreparo do homem. Assim, sendo, sendo... Que fosse menos tolo e deixasse de se matar em troco de nada. Falava de cabeça baixa como se juntando as palavras. Qualquer dia você irá reconhecer, tenho o miolo certo e não desmereço, sou mulher de fibra, não uma cega-rega qualquer. Tá me ouvindo? Mas, o marido escutava só por um ouvido, o outro colado no radinho de pilha, a conversa entrando nele e se misturando com a zoadeira do pequeno objeto. Estava embebido e abobalhado, voava longe, ziguezagueando. Na sua desinstrução. Na sua surdez. E os dias se passando, tão, tão...
Acontece que houve uma festinha: o vaqueiro fazia mudanças. E todos correram para abraçar compadre Ofrônio e dona Zuzu. Aí sim, uma festa pra acudir gente. Havia surpresas. Então, o patrão chegou amoitamente. Ficaram todos em silêncio, feito parede, desdançaram. O homem arreganhou a cara, virou o rosto e sorriu não rindo. Estamos numa festinha, de variação, pode entrar. E gritou para a mulher se fazer servir aos chegados. E também sentiu dever de ficar olhando o patrão. Quero nada não, somente um cafezinho. Pronto, aqui está, feito na hora, bem quentinho. Depois ficou sisuda e com imaginações, não ia com a cara dele, achava um sujeito suspeitoso.
Como soube de nossa festança?, arriscou em inquirir. O patrão respondeu num átimo: soube através do ar. E o rápido diálogo parou ali. Algo cheirava mal e o vaqueiro danou-se, parecia não poder sair de sua ignorância. Disse mudando o rumo: mulher, vou dar uma volta com o patrão, cuide-se, voltamos logo. Preparou dois cavalos e partiram mato afora, foram averiguar os arredores.E no regato viram surgir o touro elegante e largo a tomar conta das cercanias. Eita boi bom!, lucroso, não brinca em serviço.
O Mimoso era o grande reprodutor da fazenda, manso até, a gente podia subir no seu espinhaço e agarrar o lombo sem medo. Porém, na hora de pegar uma vaca o mundo que se livrasse, saía espuma e o animal ficava meio amaldiçoado, adivinhando o cheiro da parceira distante. Era a vida dali, todos lhe tinham admiração. Pena que já sentisse o peso dos anos, assim como nós.
E donde eles estavam ouviam apenas o chiado das reses, no fedor de curral, terra sadia, lucrativa para seu dono, trabalhosa para o vaqueiro. O patrão achando gostoso se fazer de proprietário, ficar orgulhoso no deslumbramento daquelas matas virgens e no cuidado daquele homem simples. Alegroso! Viram e desviram, já vistoriado. Fazendona de quilômetros.
Quase de-noitinha a mesa pronta para o jantar. A festa acabara no surgir da lua, aos claros. E dona Zuzu serviu coalhada e café com tapioca e manteiga feita em casa, também cuscuz com ovos das galinhas criadas nas redondezas.Antes, comeram macarroz, carne assada e feijão verde debulhado na hora. O patrão lambendo os lábios e a barriga dando o bote, feito cobra. O ar puro distribuindo limpeza na casa de enorme alpendre e umas tantas redes armadas na noite fria. As estrelas sorriam.
O boiadeiro é um homem feliz, invejava o cidadão da cidade, deitando-se a arrotar a saborosa comida. É um sujeito despreocupado na mansidão imensa, oh, quanta alegria, quanta liberdade!, teria dito, voltando-se, melifluamente, a olhar o universo. E continuou mudo, inerte, embrulhado em mistérios. A mulher espantou num salto, o próprio Ofrônio engasgou-se, sem imaginação. Enquanto todos se inquietavam, ele continuava naquele torpor inesperado. Parecia estar noutra vida, criada por ele e também para ele. Pois é: queria. E desqueriam? Inúteis esforços...
O vaqueiro acordou à mesma hora, tinha obrigações. Em Dorremi, todos cantavam. Ele, o patrão, na mudada vida. Sem precisões. Sozinho. Só. Zinho. Vi. Vendo. Vivendo.

Bené Chaves