sábado, novembro 25, 2006 |
UM EPISÓDIO SUI-GENERIS
Éramos ainda jovens. E tínhamos saído de mais uma das reuniões do Cine Clube Tirol. Estava uma bela noite naquele sábado. Caminhamos com tranqüilidade entre árvores frondosas que ainda existiam e pretendíamos estirar a noitada em qualquer bar que se avizinhasse. Lembramos do Glacial, o barzinho de seu Oscar, que ficava a alguns bons metros de onde estávamos. Podíamos ir sem medo de assaltos, a cidade ainda oferecia segurança. As ruas eram pouco iluminadas, mas podia-se percorrê-las sem qualquer anormalidade em seu caminho. Pensávamos assim e assim teria de ser. Então fomos nos sentar em uma mesa gentilmente cedida pelo dono do bar, que ficava no começo da avenida Rio Branco descendo pelo Baldo até ao Alecrim ou subindo pela mesma até chegarmos na Ribeira. Estávamos em uma divisória de bairros. Em um glacial bar. O seu Oscar era uma pessoa aparentemente calma, atenciosa, com uma barriga que mais parecia com o gorducho cineasta Alfred Hitchcock. E tinha um jeitão meio barulhento tipo o Orson Welles. O ineditismo dele era que despertava a pitoresca faceta de também beber algo com seus fregueses. Seria, portanto, a chamada 'parceria de contrários'. Ou seja: o dono e seus clientes quase numa mesma animação. Era uma figura! Dessas de que não apareceria nunca mais na urbe natalense. Fica o registro de pessoa tão comum entre nós todos que pretendíamos ir além de uma simples conversa de bar. E nunca mais cenas com estas se repetirão com os mesmos personagens. Não sei o destino de seu Oscar, acho que continuou pouco tempo naquela vidinha. Pode até ter se retirado desta para melhor de tanto beber e tentar ganhar um pouco da sobrevivência. As pessoas são assim, desaparecem e nunca mais as vemos. Ficam somente as sombras de um bom passado e as lembranças como consolo. Mas, naquela noite houve uma peleja, uma peleja entre dois filmes famosos. Um seria A marca da maldade, o outro Um corpo que cai. Justamente duas fitas de dois diretores que poderiam ter algo em comum com seu Oscar. Em comum, vale dizer, no sentido de certa aparência no tipo físico, nada a ver com a intelectualidade dos cidadãos de cinema. Inclusive porque acho que o seu Oscar não devia saber nada da existência de tais filmes e similares. Era um homem simples, acredito que de poucas letras. Ou quase nenhuma. E começamos a disputa entre as fitas mencionadas. Fulano, o seu voto. Sicrano, o seu. Beltrano, diga seu favorito. Assim pedíamos o voto de cada amigo sentado em uma cadeira nada confortável daquele pequenino bar. O embate estava duríssimo. E seu Oscar parecia também torcer, entre cada fita selecionada ele tomava um gole de cerveja. E nós também. Eu me lembro que votei em A marca da maldade. Porém Um corpo que cai avançava na preferência de alguns. Era um duelo também entre duas atrizes famosas, a Kim Novak e a Marlene Dietrich. Em termos de interpretação a segunda levaria vantagem, mas no quesito beleza a primeira venceria com boa folga. E aí estava se chegando ao fim daquela célebre peleja. Quem venceria afinal? Era certo também que todos nós já estávamos mais pra lá do que pra cá. E tinha um amigo, de nome Palocha, que resolveu inovar o seu voto. Que por sinal seria o de minerva, já que a disputa estava empatada. E o pequeno homem levantou-se, abriu seu bocão já com bafo alcoólico, ajeitou os óculos que ameaçaram cair e ditou, com voz embaralhada: Um corpo da maldade. Um corpo da maldade? Todos ficaram perplexos, imagino que alguns despertaram do torpor etílico e começaram a rir, rir. Riram sem parar. Palocha, tal filme não existe!, gritaram algumas pessoas mais atentas. E o dono da esdrúxula sentença apenas balbuciava para si. Acredito até que o seu Oscar acercou-se de nossa mesa e começou a rir também, embora soubesse vagamente do que se tratava. E a cada novo riso emborcava o conteúdo líquido na garganta adentro. Mas, a bem da verdade, o Palocha até que sugeriu um belo nome para um filme. Mesmo sem querer. Depois da inusitada ocorrência, resolvemos fechar a conta (que já deveria estar acima do normal) e nos despedirmos. Dali cada um deveria seguir seu itinerário noturno ao encontro de sua residência. As estrelas pareciam faiscar nossos rostos. Nem sei bem como o Palocha chegou em sua casa, talvez investigando minuciosamente cada passada até o local indicado. O certo é que ele bebera mais do que os outros. E o certo também é que todos ainda ríamos enquanto caminhávamos em direção ao nascer de um novo dia. Resta hoje apenas uma imensa saudade do que se foi e não volta mais. Muitos anos depois, resolvi juntar em um pequeno texto o que aconteceu naquela noite de um sábado enluarado. Nem me lembro bem se realmente estava enluarado. E o que segue abaixo faz parte de meu livro "Cinzas ao amanhecer"(2003), dedicado, o poema, claro, ao Palocha. Só que mudei o nome original e pesquei o título que ele dera naquele porre homérico.
UM CORPO DA MALDADE Para Palocha
No bar Glacial, antônimo embate: o policial gordo bêbado corrupto aquele detetive em diligência a nostalgia da velha amante uma morte caída no telhado o belíssimo corpo da maldade incitando solitárias tentações.
No glacial bar, a exótica junção racional e incontida, mesclando a beleza da loira/morena vida.
Bené Chaves
domingo, novembro 19, 2006 |
PALAVRAS QUE INQUIETAM (20)
· Nascia, então, o filósofo Aristóteles, no ano 384 a.C., discutindo, depois, se poderia ou não existir um ser humano imaginário. E assim se expressou com dignidade: "O homem ideal é altruístico porque é sábio... Não fala mal dos outros, nem sequer dos inimigos, a não ser que o faça diretamente a eles... Não guarda rancor e sempre esquece as injúrias... Em resumo, é um bom amigo para os outros porque é o melhor amigo de si mesmo". E acrescenta adiante que ele "sente prazer em fazer favores a outros homens, mas envergonha-se quando outros lhe fazem favores". É, meu caro Aristóteles, parece que não existiu ou existe neste mundo pessoa tão perfeita.
· O que diria o genial Charles Chaplin, autor da obra-prima Luzes da cidade? No entremeio de O grande ditador ele satiriza principalmente Hitler quando na antológica seqüência brinca com o globo terrestre como se fosse uma criancinha acariciada ao colo. Queria, óbvio, dominar o mundo. Mas, no final do filme Carlitos proclama uma bela mensagem : "Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto, lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice. Neste mundo há espaço para todos". Creio, por conseguinte, que Aristóteles se contentaria se pudesse ter escutado Chaplin falar. Infelizmente eles viveram em épocas bem distantes. Mas, não teria sido um espaço e passo para homens e mundos ideais?
ESPAÇO LIVRE
SELO DA VIDA
No desespero e postura de seres vivos soçobrando ante o passar dos tempos a morte joga xadrez na certeza da incerteza e irrisória vida.
E a imagem abismal do mar sinuoso obscurece o ser do destino fatal.
No desfecho da narração-poema a final e pictórica paisagem.
Não há de ser um alumbramento?
Bené Chaves
sábado, novembro 11, 2006 |
PALAVRAS QUE INQUIETAM (19)
* Platão teria falado de que "é o corpo de tal modo que nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas - que por seu intermédio não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer!". Completa, então, ele, dizendo: "o corpo é uma coisa má, e enquanto nossa alma estiver misturada com ele, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos, que é a verdade". Porque, afinal de contas, "tudo o que se tem por evidente não é mais que preconceito... todos os preconceitos não são mais que obscuridades vindas de uma sedimentação da tradição", diria Edmund Husserl. E a verdade, nesse caso, poderá ser uma evidência das discriminações ora estabelecidas.
* Falemos agora um pouco sobre o sonho, esse enigmático conjunto de imagens que se formam seja no sono ou fora dele. Já dizia o filósofo Barrows Dunham (O Homem contra o Mito), citado aqui anteriormente, que "os sonhos que os homens têm quando dormem são fragmentários e confusos. Os que eles têm quando estão despertos transformam-se na substância de um mundo". Embora o psicanalista Sigmund Freud tivesse dito que "eles, os sonhos, são a realização de um desejo" (no sono seria pouco provável), na maioria das vezes sonhamos dormindo verdadeiros absurdos. É como se estivéssemos em um labirinto a tentar solucionar o insondável. Aparece então um mundo totalmente surrealista, dando ensejo a mil interpretações, com isso trazendo à tona também o cineasta Luis Buñuel com seu filme Um Cão Andaluz, realização de 1928 sob a égide onírica. E temos outros exemplos, como no filme Morangos Silvestres (Bergman, 57). Na sua melhor seqüência mostra o pesadelo do personagem, condicionando todo o resto da fita, num prolongamento das ações e reações inconscientes ou não do mesmo, dando um sentido de grande alcance ao seu desdobramento. E quem não gostaria de viver sempre sonhando com a felicidade sem exceção nesta injusta vida de constantes violências? Porque, inclusive, "este mundo é o mundo da vontade de poder e nenhum outro; e tu mesmo, tu és assim, esta vontade de poder e nada mais", disse Nietzsche, talvez querendo sufocar o desejo veemente do homem pela ambição total.
ESPAÇO LIVRE
DESENGANO
Ah, rosas vermelhas!
Quão pétalas sorrateiras correndo tristes e soltas no riacho da vida. Contínuos pesadelos de uma mente oblíqua na vivência cinzenta da irreversível dor .
A dor do acaso, do desamor do amargo sabor, sem cor.
E na efêmera existência, o ato final da dissolução em prantos.
Ah, rosas murchas!
Bené Chaves
sábado, novembro 04, 2006 |
PALAVRAS QUE INQUIETAM (18)
Þ Sobre o amor e o ódio, teríamos ainda a dizer que a proximidade dos dois substantivos masculinos é demonstrada também no excelente filme A sombra de uma dúvida (Alfred Hitchcock, 1943), quando a personagem central vê seu mundo e sonho desmoronarem ao saber que seu tio é um assassino frio e cruel. Tendo uma afinidade amorosa com Charlie (tio), a também Charlie (sobrinha) transforma seu afeto em uma aversão intensa. E a recíproca, claro, é verdadeira. Evidente que aqui existe um motivo forte para tal modificação, mas é de se saber que nos relacionamentos de casais essas duas palavras atestam o grande enigma sentimental nelas inseridas. Um bom exemplo que poderíamos citar é - principalmente - o da traição feminina. Mesmo amando em demasia, aquela pessoa passa a odiar em excesso, decepcionada com algum fato ocorrido. E na película em questão, temos ainda o agravante do mesmo nome em comum aos dois. É a chamada empatia familiar, que a partir de um acontecimento grave passa a existir apenas subjetivamente. Poder-se-ia dizer, no caso, então, que o amor era tão grande que virou em ódio. Em outros modelos, vice-versa. Portanto, o desfecho aqui na fita do velho gorducho foi fatal, ou seja, a morte como uma possível solução para o questionamento.
Þ E a discordância era evidente entre Albert Camus e quem viveu bem antes dele, Platão. Enquanto o primeiro afirmava categórico: "mas, só há um mundo...", o segundo já havia dito que "existe o mundo das idéias imutáveis, eternas, e o mundo das aparências sensíveis, perpetuamente mutáveis", completando a seguir: "e o mundo das idéias é o único verdadeiro". Quem estaria com a razão?
Nesse ínterim, Heráclito (540/470 a.C.) vaticinou: "tudo flui, nada persiste ou permanece o mesmo". Porque, diz ele, "os homens são deuses mortais e os deuses, homens imortais", filosofando então que "viver é-lhes morte e morrer é-lhes vida".
ESPAÇO LIVRE
INQUIETAÇÃO Entre jardins e flores apanho o teu sorriso e lanço-te na relva macia ardente e febricitante deitando-me junto de ti.
Fico, então, na vã espera sôfrega de um langoroso porém forte sentimento.
E naquela tênue chuva a sensibilizar e suavizar afetos e amorosas descobertas possuir-te sem pudor.
Bené Chaves
|