O texto abaixo foi publicado aqui em outubro de 2004. Ei-lo novamente para as amigas e amigos que não o leram não ocasião. E também para uma releitura do que já o conhecem, claro.
PARENTESCO DOS SÓIS
Era domingo. Os canários do vizinho cantavam a valer, pombos voavam no telhado e, ao lado, num terreno baldio, meninos jogavam bola. Tia Chica preparava o almoço. Uma voz eclodiu da varanda: diga a preta velha que capriche, hoje estou com uma bruta fome! Mainhô apossou-se de uma cadeira e ficou a bordar um pano tingido. Certamente seria o seu enxoval, meu filho, que ela preparava com muito gosto.
Painhô contou: no sertão, depois de um dia na enxada, sol pegando fogo, os homens voltavam pra comer tardinha do dia. Porém, como alguns não tinham suprimentos em casa, terminavam comendo a mulher mesmo, não literalmente, lógico. E, desse modo, o jeito era criar um bando de filhos. Foi Deus quem mandou, diziam as mulheres já prenhes. Só que esta historinha tava muito mal contada.
Ferrões também tinha um belo anoitecer. No alpendre da casa de seu avô, continuava ele, a gente sentia o cheiro gostoso de queijo do sertão, manteiga, pão assado, aquela coalhada também de leite puro, fresco, tirado da vaca, madrugadinho. Ai Tia Chica lá...Aliás, a preta velha tinha preparado uma saborosa macarronada, dessas de deixar todo mundo com os beiços lambendo. Eu mesmo já estava sentindo aquele cheiro sem igual e doido para aproveitar o restinho na barriga de Mainhô.
Mas, juntos, fomos nós, filho, degustar a tal comida já exposta à mesa. Tia Chica se enchendo de alegria, os olhos salientes de tanto deslumbramento. Aquela iguaria que fez nos deixou empanzinados, sua mãe tendo de abrir o chambre pra poder respirar um pouco, ufa! Quase que lhe sufocou, mas acho que você consumiu feito um guloso, não?
O sol descia de posição e crescia também colado aos morros de Gupiara. Era enorme e um pouco desigual, se comparado ao seu parente de Ferrões. Tinha, em suas bordas, um acabamento como se tivesse sido feito com mãos de ouro. Fomos vê-lo sumir-se. A visão trouxe encantamento à cidade. Painhô, já descansado do vasto almoço, começou a dedilhar seu violão:
Tava um dia no porto de AlagoasEncontrei tudo em bela condiçãoMais de cento e cinqüenta embarcaçãoEntre paquetes navios e canoasNa presença de mais de mil pessoasCom o barco alemão me agarreiQuando o bicho quis sair eu segureiNesse dia seu Minana criou famaO oceano ficou da cor de lamaMas o navio só saiu quando eu larguei. Meu pai disse que nunca estivera em Alagoas, mas não acreditei nessa história. Acho que ele andou aprontando pras bandas daquele cais junto com amigos boêmios. Esse imprevisível Painhô!... Bené Chaves