
O texto abaixo foi publicado aqui em fevereiro de 2005 e já tinha saído no jornal natalense 'Tribuna do Norte' em 20/5/1984. Com algumas necessárias modificações mostro-o novamente para os que não o leram no período. Ou, então, para uma releitura aos demais.
PEQUENA NARRATIVA AO ACASO
Dizia em alto e bom som que quase todo ser (dito) humano era supostamente de mau temperamento, e, portanto, ficara visível que não ia com a cara de tais pessoas. Não que elas tivessem feito algo de errado com nosso ilustre cidadão, mas, de qualquer maneira, detestava lousas e cousas. Também sentia que as ditas cujas eram instrumentos da vida / vivência, lógico que não tinham culpa alguma do modus-vivend tradicional e convencional. A não ser aquelas que se enquadravam como sabidas e bem nutridas, ambiciosas, vaidosas e individuais.
Sabia que a civilização dessas lousas e cousas impedia o conjunto de mudanças no curso do tempo. E em um quadro-negro existente, traçava o perfil dos homens sábios que tiveram visões de um mundo melhor. Parecia assemelhar-se aos próprios.
Então, o amigo interlocutor teve uma idéia genial: montar um humilde jornaleco e distribuir sua primeira edição entre os habitantes do lugarejo. Era um idealista, tarefa difícil nesses anos de caos... Sei apenas que disseram que tudo não tinha sentido, talvez fosse até um ato subversivo, indo de encontro aos bons costumes do pequeno lugar. O ambiente fervia e luzia de descontentamentos. Rostos atemorizados, passos assombrados, mediocridades espalhadas, pois, dizia ele, quanto mais parvo fosse o povo, nada pra ele de novo.
(Nuvens flutuavam sem que a gente conseguisse ver o céu e negligenciavam sob um universo opalino. E ele, o céu, vestia-se de grossos agasalhos para, evidentemente, não morrer de frio. Embora a gente soubesse que o mesmo poderia se desnudar a qualquer momento).
E depois, nosso intrépido amigo viu muita gente brigando sem justa causa, matando-se por migalhas, a violência ferindo corpos e retinas dos homens cultos e perseverantes. Teve medo do mundo lá fora e acolheu-se silencioso, somente a pensar no desdobramento daquela infértil reação. Deduziu com seus redondos botões: temos algo a fazer quando não pactuamos o lado inútil da questão. Escancarou a janela e ficou a pensar sobre as conseqüências de uma vida sem fulgor.
A noite se agitava e estrelas jogavam-se umas às outras, como se estivessem a gritar impropérios e a xingarem-se mutuamente. As mais fracas caíam no mar e se batiam com exaustão, enquanto as triunfantes orgulhavam-se a luzir belas e vaidosas. Decerto era um aforismo dado pelo Cosmo... E imaginado pelo eminente e pertinaz observador. Conseguiríamos entendê-lo no seu profícuo pensamento? O anverso do verso?
No dia seguinte a cidade teria amanhecido circunspecta, afinal todos ainda iriam enfrentar qualquer situação nova. Chegou-se à conclusão de que o ser humano (ou não) era uma vítima de sua própria engrenagem. E se existiam os oportunistas, corruptos, sabidos ou de índoles desonestas, eles talvez fossem uns pobres-coitados. Ou melhor: uns ricos-coitados. A culpa estaria certamente no sistema, que era um tema e lema torturante no mecanismo de uma sociedade sem princípios.
E o citado cidadão tinha consciência disso tudo, mormente quando mostrava a predisposição para esse tipo de coisa, ou seja, maleável aos acontecimentos surgidos. Ele cresce e convive ali, tem, portanto, que participar. Era um destempero de que não poderia fugir.
Enquanto falava meio convicto, tinha quase certeza daquilo que dizia, pois era evidente que manifestava uma visão melhor do que a nossa. Claro que sabia das intempéries, amolações e fuxicos, manhas e artimanhas. E diante da esperteza que atingia já o clímax, de conluios e arranjos, acordes e acordos, besteiradas diárias, disse para si mesmo e como última instância: tudo parece, nos fins e afins, uma bobice indissolúvel.
Foi dormir pensando o que nos traria o dia seguinte...
Bené Chaves