ITINERÁRIO ALFABÉTICO (3)
(Quadros da pintora russa Tamara de Lempicka )
IDEAL também dizer: gostava de jogar bola. A gente formava um time, respeitado, eu, no meio dele, metido a bicho medonho, conhecedor da arte de lidar com a pelota. Espaços compridos possibilitavam o aproveitamento da área larga. E naquele campo não-oficial dominava o redondo objeto de couro como se fosse um verdadeiro craque. Voltava à noitinha, cabisbaixo, recebendo carões. Mainhô parece que só queria me ver nos estudos, nada de distrações extras. E dizia: você, hein?, por acaso disse pra sair? Botava-me de castigo e lá ficava eu mofando e olhando para aquela horrível parede descolorida. Saía desconfiado, os pés doídos. Esmurrando o muro, sem cor, teimava em largar tudo enquanto Mainhô se enfezava com minha atitude, para ela, um modo de proceder desrespeitoso. Seria depois surpreendido a jogar botão de mesa...
JOVEM ainda voltei pra fazenda. Cheguei, montei um dos cavalos bonitos e saí a trotear gostoso pelo espaço aberto do campo, aquele lugar desabitado onde predominava os cantos dos passarinhos e o cheiro do ar puro, a vastidão das matas florestais a nos trazer saúde. Vidinha mansa, como diria Painhô. Aliás, foi ele quem me ensinou a montar naquele alazão formoso, bom da peste, no modo de dizer, claro. E eu pulava em cima do animal e vez em vez levantava suas duas patas e segurando nas rédeas, chicoteava-o, ele abrindo as ventas e rinchando um grito talvez de dor. Saltava com ele, então, aqueles enormes cardeiros e xiquexiques que se punham à nossa frente. E o alazão elevava-se com vigor, feito menino, éramos então duas crianças a correr estrada afora como se estivéssemos num campo de hipismo. Depois tudo acabou: a criação da fazenda foi devassada e devastada, acho que meu cavalo morreu quando a máquina chegou. Feiíssimo e horrível... O progresso matara a ingenuidade e o ar escurecia. E a gente teve de correr às pressas. Homem e máquina: natureza perdida.
KNOW HOW eu ainda não tinha nenhum, mas com certeza e o passar dos anos iria adquiri-lo sem pestanejar. Seria questão de paciência e tempo também. E principalmente estudo. Portanto, dali em diante teria de me esforçar para entender tudo. E Painhô certamente ensinaria o que ele já aprendera na vida.
LUTEI desde criança para manter boa aparência. Com idade de quatro ou cinco anos todos gostavam de mim. Ao menos imaginava que fosse. Um gênio ou um imbecil? Nem uma coisa e nem outra. Disso sei: nasci com aquele belo porte que tanto a parteira avisara. Mas, depois, é lógico que a gente, no crescimento, perde algo e fica frugal. Ou vice-versa. E parece que os cinco quilos e duzentos gramas se malograram e diluíram com a idade avançando e fui ficando magro, mas, ao mesmo tempo esbelto, no que redundou depois um rapaz, modéstia à parte, de estatura modelar. Que o dissessem depois as mulheres... E que mulheres! Nem gosto de pensar, pois me dá uma saudade danada de um tempo que ficou perdido entre as sombras de uma ilusão. E com ele, o tempo, tudo se dissipou e depois acabou. Restam, atualmente, lembranças de uma época onde a inocência e a felicidade não tinham data para cessar. E tudo que a gente fazia sentia um sabor agradável do desmedido.
ESPAÇO LIVRE
POSSESSÃO
Quero vê-la
com tesão
tomá-la inteira
no segundo
minuto
hora.
Você é meu desejo
o painel
pincel
ensejo
as cores de babel.
Sem algum temor
devo fantasiá-la?
Ao extremo gritar
uma finda dor?
Bené Chaves
(Ao lado: arte de Fernanda Fonsêca)