O texto abaixo e o poema do 'espaço livre' já foram publicados aqui. Sai novamente para os que ainda não os viram. Espero que tenham uma boa leitura.
ESTÓRIAS DE VERSAR
Meu pai chegou ao alpendre e viu Mainhô sentada na cadeira, movimentando os lábios. Então cobriu seus olhos e ela teve um moderado susto. Disse: fazia um sapatinho de crochê, aqui pro nosso filhinho, apontando para a barriga. Deu, então, um beijo na face dela e deitou-se na rede descansando, enquanto Tia Chica não chamava para a janta.Pegou o violão e tentou ensaiar alguns versos. Mas, meu filho, eu não me sentia bem. Na verdade às vezes a gente fica meio indisposta. E, naquela beirada de noite, estava macambúzio. Sem nem entender a palavra que falou fiz de conta que a tinha compreendido.A lua não quis sair e tudo ficou no escuro mesmo. Me lembrei, então, quando criancinha, o papai-oião rondando nossa imaginação e estórias de assombração dizendo das proezas dos lobisomens, minhas mãos cerradas à saia de Mainhô. Existia também o papa-figo, sinal de alerta para menino desobediente, sobreaviso de brincadeira e inocência. Época boa aquela, que devia ter persistido. Arre, arre! Grunhem-se e soltem-se gritos de pavor contra o dito progresso da civilização.
Mas, meu pai disse que tinha feito alguns versinhos e começou a citá-los, embora sem entusiasmo:
Ah, vidinha sem graça essa
jamais ultrapassa...perpassa e repassa
que raramente traspassa
cheia de muita desgraça.
Ah, vida louca, paradoxal
não tendo sentido factual
ilógica e sempre usual.
De dor e pouca raça
sentimentos perdidos
amores tantos sofridos
e outros adquiridos.
Além de não esconder um certo descontentamento, Painhô ocultou-se, virou o rosto e fincou os olhos somente nas cordas do violão. E a lua pareceu solidária com ele e solitária como ele, pois ninguém conseguiu enxergá-la na ocasião.Continuou, portanto, sua peregrinação nostálgica:
Da menina passada
a virgem que não olhou
da mulher amada
e a velhice que chegou.
Vida de gigantesca trapaça
sem leito, nenhuma taça
deixando pessoas sem praça
vidinha que passa e não passa.
Gupiara ficou triste naquela noite, todos ficaram melancólicos. Painhô pareceu-me fazer uma previsão futura. Mainhô me disse que até a comida de Tia Chica não saboreava. A cidade era nossa vida, mas, paradoxalmente, não era. Meu pai não queria que ela crescesse, desejava Gupiara bonita e humana. Acho que ele tinha razão que a própria razão desconhecia.
ESPAÇO LIVRE
CINE MISCELÂNEA
Quando vi a ruiva inocente
no rosto da sensual morena
beijei a loira fremente.
Através do espelho a imagem
estilhaçada entre revólveres
confundindo-se na miragem.
Então a canção na chuva
como exposição mágica
acrescida de uma luva.
A explosão como desatino
o herói a cavalgar ferido
ao encontro de seu destino.
E na ciranda da felicidade
a infância redescoberta
deliciando nova idade.
Bené Chaves