O texto abaixo já foi publicado aqui em 2004. Coloco-o novamente para uma apreciação ou uma reapreciação. Espero que tenham uma boa leitura
O VIOLÃO DE PAINHÔ
À boq
uinha da noite Painhô voltou do trabalho e jantou cuscuz com tapioca, também aquela coalhada deliciosa de um leite puro, sadio. Depois foi até a cozinha e deu os parabéns a Tia Chica, ela orgulhosa, jeitão desconchavado. Obrigada, estou às ordens, precisando... E, então, meu pai aproveitou e criou um neologismo para nomear o prato saboroso: leitapioca!Foi até ao quarto, pegou o violão, a rede já esperando e juntou Mainhô - ainda com a barriga daquele tamanho -, a preta velha e começou a cantar. Engatilhou os dedos nas cordas e não parou. Misturou letra, substituiu nomes, juntou palavras, fez o diabo. O violão de Painhô era, no mínimo, diferente. Parecia brilhar se alguém o tocasse, seja literalmente ou quando de seus acordes saíssem uma bela canção. Transmudava-se com o dedilhar de seus mágicos dedos. Diziam que, a exemplo de Tia Chica no fogão, meu pai, com o violão, era o cão. Tudo isso no bom sentido, lógico.Parecia montado num cavalo pampa, caminhando léguas, não soltava as rédeas, ou melhor, as cordas. Era um autêntico cabra da peste. Neste dia, filho, eu fiz travessuras com as mãos, soltei lindas emboladas pela goela. Ninguém conseguiu me parar. A varanda estava iluminada e a lua nascia e crescia novamente dentre os morros. Painhô pediu a Tia Chica um copo de água pra molhar a garganta, enquanto acariciava o ventre de minha mãe. E eu ali, dentro dela, quietinho, não via a hora de sair, querendo a todo custo gritar: bem que eu disse, estou com jeito agora de menino vivo.
E então meu pai respirou fundo um perfume que veio do lado do jardim e sapecou a última moda da noite:
Eu fui à loja fui à venda fui à rua
Fui comprar ferro de pua
Que é danado pra furar
Eu fui à rua fui à loja fui à venda
Fui comprar umas encomendas
Que mamãe mandou comprar.
E entrou com o estribilho, misturando sua ordem:
Ô mulher sai do sereno...
Ai ai ai ai Mainhô
Que este sereno faz mal
Você é meu calor...
Sentou na cadeira e segurou a mão de minha mãe. Um bom período Painhô ficou nesta posição. Tentou escutar na barriga inchada dela alguma inquietação minha. Mas nada ouviu. Parece que eu já dormira naquele ventre volumoso. Mesmo com todo o barulho ao redor.
Na madrugada quente o galo cantou e ouviu-se um chiado estranho pras bandas do quintal. Todos foram dormir. Algumas horas depois ficou somente um ponto no firmamento. A lua estava desaparecendo e lentamente subia para dar lugar ao companheiro sol.O dia cadenciava, clareava. E o arrebol deixou todos impressionados.
ESPAÇO LIVRE
A CONSTRUÇÃO (EM CORDEL) DO SÍLVIO CALDAS (RN)
O poeta e escritor Sílvio Caldas (RN) lançou em cordel (sextilha) 'A Construção do Brasil' no dia 27 próximo passado. Compareci ao evento e compartilho com vocês de alguns trechos do referido livro. Espero que tenham uma boa leitura.
O ano: mil e quinhentos;
Cabral e os quatrocentos,
Sem contar tripulação
Aporta na nossa 'ilha'
Pensando que a maravilha
Fosse pequena, pois não.
*
Na sua carta afamada,
Descrevendo a arrojada
Aventura de Cabral,
Com muito puxa-saquismo
Fez nascer o nepotismo
Corrupção e coisa e tal.
*
Assim nasceu a República
A chamada coisa pública,
Nova fonte de ilusão.
Deodoro: só dois anos;
E os nossos mil desenganos
Logo continuarão.
*
Aí sim, povo enganado
Governo tão relaxado
Como tal, nunca se viu
Maldita prorrogação
Infeliz dessa Nação
Que dom Fernando iludiu.
*
Houve dólar na cueca,
A deputada sapeca,
Dançarina de salão
Cassaram a Casa Civil,
Delúbio não resistiu,
Houve muito comilão.
*
Mas já no primeiro ano,
Que tristeza! O desengano
Tomou conta da Nação:
A corrupção atrapalha,
Tem operação navalha
Nunca vi tanto ladrão.