
OUTRAS EMBOLADAS
Meu pai me contou que na cidade onde nasceu os estrondos eram maiores do que em Gupiara. Quando raramente apareciam, os trovões mexiam com a terra. Imagine você que um dia o solo balançou como se fosse abrir... Nossa-Mãe-de-Deus!, não quero nem pensar, teria dito esfregando as mãos. Pois bem, as coisas eram assim ao contrário, iguaizinhas a hoje em dia.
Na seca brava -continuava ele- todos morriam de sede, porém nas enxurradas morriam afogados. Não dava pra entender tudo. E aquele povo nunca estava satisfeito. As intempéries não vinham aos poucos, chegavam, isso sim, em farturas. Juro não ter visto gente pra sofrer mais do que aquela. Pobres-coitados! Qualquer dia mato a saudade e vou rever o que restou dali. Triste sina...
Os olhos de Painhô se enchiam de lágrimas. Tinha lembrança das coisas. Era um sujeito bom. Mas, o que foi, foi. E o coração dele batia alto. Acho que existia sentimento demais para um mundo de perversidades, preconceitos, traições e, sobretudo, desamor. Queria amar a todos e, principalmente, amar as mulheres. E a dele em especial, um amor diferente, fraterno, singular. Disso não arredo pé, meu filho, vem aqui do meu íntimo, do meu gene - dizia com certo orgulho.
No mato longe, as cobras rastejavam inquietas e galhos eram pisados pelos cascos dos pampas. Nuvens cresciam, escureciam, voltavam a clarear. Raízes apareciam timidamente e a terra floria novas esperanças. As faces, em curtos momentos, se tornavam menos tristes.
Do alpendre, encostado na volumosa e redonda barriga da mulher (e com Tia Chica a preparar suas iguarias), Painhô pegou o violão e começou a ditar suas modinhas:
Saco bisaco bisaco saco de chumbo
Chapéu de coro é corumba
Macaxeira do Pará
Nego danado nunca diga que me deu
Pois você brigou mais eu
Quase morre de apanhar
Eu dou na testa dou na venta e no olho
Que o nego fica zarolho
Com vontade de chorar.
E continuou depois o estribilho:
Ai ai ai ai Maria
Ai Maria
Maria é meu amor
Vendo que minha mãe começou a verter lágrimas de tanto rir de suas estranhas cantorias, dedicou esta 'quadrinha' pra ela e alisou-lhe o cabelo:
Mulher dos olhos d'água
Não olhe pra mim chorando
Que a rua não está cheia
Nós estamos namorando
E voltando com o estribilho, abriu um longo sorriso, gritando pra dentro da casa quando sentiu o cheiro mágico vindo de lá:
Ai Tia Chica você é nosso amor
Sai do sereno qu'este sereno faz mal
Amor sereno. Serenamor.
E como a noite já estava ficando tarde, no dizer do povo, levou o estribilho e mudou as palavras:
Ai ai ai Gupiara
Ai Gupiara
Você é meu amor
Acho que meu pai extrapolou de cansaço nesta noite, a lua ficando do tamanhinho de nada e quase um ponto no espaço. Tenho a impressão que ele foi dormir mesmo. Soube depois pela preta velha que não se ouviu um gemido no quarto.
Mas, que ele dormiu abraçadinho com minha mãe, ah... disso tenho certeza!
ESPAÇO LIVRE
DUALIDADE
Na ânsia de despi-la
eu visto-me de prazer.
E na decepção de vesti-la
eu dispo-me de ilusão.
Bené Chaves
por
benechaves às
22:38