O conto abaixo faz parte do livro Castelos de Areiamar, edição de 1984. Tentei reduzir ao máximo para colocá-lo aqui, já que o texto original é um pouco longo. Não sei se consegui o intento. Espero não tê-lo tornado de difícil compreensão. Portanto, desejo a todos uma boa leitura.
OS PRISIONEIROS
O homem cochilava na mesa, sem respiração. Velas ornamentavam a estreita sala e choviam pingos de lágrimas estalando no piso frio. O ambiente era triste, cerimonioso. Fora, o céu se vestia de nuvens.
A vida sem atribulações, teria sido uma pessoa com uma visão incomum, um cidadão raro. Um mestre; magistral. Mas estava ali agora, inalterável. Rápidos olhares e deslizamentos no chão encerado, molhado. Desde a madrugada deitado, a mulher sofrera muito pra pegar o corpo ferido, sozinha e sem ajuda.
Trancou-se no quarto e em seguida jogou o cadáver nos pés da pobre. Dentro em breve a sentença numa tabuleta: "Não adianta, está morto. Colapso!". E fechou-se circunspecto. Ela ainda quase arrombou a porta a gritar palavrões, porém logo botou o homem nas costas e voltou aterrorizada.
A válvula entupira quando ele repousava, grãos de areia atirados naquele buraquinho, quem diabo fez isso?, justo quando o homem tava descansando... Houve o entulho! Logo ele que tinha consertado nesta tarde uma placa metálica!
Soluçando perto do caixão a mulher abarcava prantos saídos surdamente. Cochichos, risos, lamentações, conversas dali e daqui. Com desprezo deu um chute no banco e gritou um grito de pavor, alarmada, respirando fraca... Sufocada.
O padre chegou e rezou algumas preces, confortou os acreditados. O caixão saiu arrastado por mãos pesadas. Difícil suportar a situação, a miserável hora que lhe fora imposta.
Saí do trabalho às pressas, uma notícia ruim: "Seu amigo morreu, hoje cedo, ao acordar, sentiu-se mal e pronto". "Sem mais nem menos, assim, de supetão?". "Pois é, cara, isso mesmo". "Não pode ser, não acredito". "Nosso futuro é esse aí!", exclamou ele torcendo o pescoço e colocando-o em direção de um incerto caminho. "Um desperdício!", voltou a murmurar.
Cheguei perto e o vi com castiçais em volta, solitário. Ao redor, coroas de flores... Ao longe, sussurros abafavam ruídos. E uma mulher de roupa escura chorava ao lado, sofrida, ainda com raiva da realidade alterada. Ele, estirado, alinhado, cabelos penteados, barba feita, prontinho como se fosse a um passeio.
-Um buraco, a terra toda rombuda!, ouviu-se perto.
Não pensou nisso, a vida atarefada, obrigações, um trabalho mais exigido, pouco divertimento. Vida dura, mulher, vida dura. Pra morrer e pra viver o que a gente precisa é ajeitar as coisas, tá tudo desarrumado.
Balançando a rede, o menino gritou: "Pai, pai, vem ver, a bicicleta tá rodando, olhe...". Como ele não respondesse, o garoto saiu desinteressado a pedalar no terraço sumindo num ponto de luz. A casa escureceu.
O abafado lugar soltava uma fumaça e figurava uma cor de lodo nas faces presentes, o teto oferecendo uma réstia de sol enfraquecido. O caminho seria demorado, custoso, um corso forçado. Trepidante. A cama já pronta, à sua disposição, arrumada.
Milhões de curiosos ao portão, luzes e refletores incendiavam os carros. Uma faixa o saudava. Armado no interior, o palanque serviu para melhor se ver aquele momento súbito, definitivo.
Um cidadão de jaqueta escutou o seu nome e subiu, falou, desfalou. Depois outro e outro e mais outro. Estava cumprida a missão. Todos entreolhavam-se, cabeças escondidas, rostos no chão frio, duro, barrento. Varreu, então, uma ventania e cobriu suas caras.
O caixão foi abaixado e tapado com tijolos. Empurrado e colado com cimento, o cidadão era um prisioneiro. Lá no alto algumas estrelas olhavam a lua fazendo sua sesta. O frio corria pelos corpos. Coloquei meu casaco e fui o último a sair, distanciado, sozinho. Aguardei a pedra derradeira e a pá de cal escorregar lenta e macia no pedaço de mármore roído. Quando estava fora do alambrado desviei o olhar e dei um passo em volta: vi inúmeras flores, pálidas e despetaladas. Nasceria um jardim frutificado por frágeis raízes, roseiras tristes. E depois murcharia desmanchando-se em cinzas, um montão de lixo, coisas imprestáveis.
Nada mais, nada mais pra fazer no local, apenas divisar choupanas, luxuosas residências, casas simples e ruas vazias, infinitamente vazias.
- Nossa morada!... – e estiquei o dedo pra frente.
Dormiam fechados, tranqüilos e sem maiores atenções. Uma despedida para os que ainda não estavam com sono. Dormiam prisioneiros dos vivos.
por
benechaves às
10:11