VERONIKA & VERONIQUE: um elo existencial.
Dono de uma filmografia elogiável, incluindo-se aí Não Amarás (nesta história de um rapaz que cresceu órfão e tímido, vivendo entre o amor platônico e a violência do desejo, temos uma pequena obra-prima sobre o amor), A Liberdade é Azul (também uma história de amor contada com sensibilidade), A Igualdade é Branca (segundo filme da trilogia e que trata da conturbada relação de igualdade entre as pessoas.), A Fraternidade é Vermelha (querendo mostrar que amar e se comunicar ficou quase impossível para os homens, o famoso cineasta apela para a irmandade), Não Matarás (aqui constituindo-se no ponto de partida de seu discutido Decálogo, mostra o assassinato frio e perverso de um motorista de táxi, num retrato cruel da sociedade polonesa), entre outros, o polonês Krzystof Kieslowski parece superar-se a todos quando nos brinda com A Dupla Vida de Veronique, fita realizada em 1991 mostrando uma bela crônica sobre a reflexão e também símbolo de harmonia entre a música e o cinema.
São duas irmãs. Uma vive em Cracóvia. A outra em Paris. Têm a mesma vocação, embora não se conheçam. A mesma relação de proximidade com o pai, os mesmos gostos. Enfim, as naturais idiossincrasias do ser humano. Uma aprende música, mas quando o eixo de ligação é cortado, a outra deixa também de cantar. As mesmas fisionomias.
Diz, portanto, a francesa Veronique: "Durante toda a vida tive a sensação de estar aqui e noutro lado. Sinto sempre o que devo fazer". E noutro lugar a polonesa Veronika talvez tivesse a mesma impressão de não estar sozinha no mundo. São coincidências? Acasos?
A Dupla Vida de Veronique é um filme que transborda de poesia, e o seu sensualismo é mostrado logo no início, naquele plano da chuva, para posteriormente ter o desfecho no amor entre os namorados, quando depois ela fala para o pai que sentiu vontade de amar. Seria o caso de se perguntar se a chuva é também um afrodisíaco e uma libido para os seres amantes? Certamente que sim.
Kieslowski dizia que estava fazendo sempre o mesmo filme, apesar de termos conhecimento de uma "fase polonesa" e uma "fase francesa" na sua carreira cinematográfica. E na sua "fase polonesa" mostrou as condições de seu país de origem, como as desigualdades do regime comunista, principalmente em Spokoji (1976), evocando os motins da fome. Idealizou também em 1976 um polêmico tema com A Cicatriz, que tivemos oportunidade de ver apenas em vídeo.
E sobre este filme o questionamento de uma pergunta básica: será possível avançar no campo social sem ceder às pressões dos vários interesses envolvidos? Foi o dilema que acercou-se do diretor e sua obra terminou sendo considerada como maldita.
Depois que migrou para a ficção, fez um cinema de rara beleza e voltado, sobretudo, para o amor entre as pessoas. E a fita em questão é, também, uma espécie de parábola sobre como uns possam ter de sofrer para outros terem de viver e prosperar, mesmo amargamente. Um modelo de nossa existência real, com toda certeza, a arte imitando a vida e vice-versa.
Belíssima a seqüência do ensaio musical que antecede o desmaio de Veronika e conseqüente morte.(Sobre a música do compositor Zbigniew Preisner, assim falou o crítico John L. Walters: "ela desempenha um papel tão importante que o espectador chega a pensar que as imagens estão ali para iluminar a música". Quanto a isto, sabe-se que a narrativa fílmica é bastante enriquecida com ela, que serve para fustigar esse ou aquele melhor momento. No caso aqui, em particular, a música parece compor as imagens do filme). Com aproximadamente vinte e sete minutos de exibição, Kieslowski corta o elo espiritual que existia entre Veronika e sua irmã.
E a francesa Veronique diz: "é como se eu sentisse uma mágoa", logo após o enterro da irmã (enterro este posicionando a câmera num ângulo genial, de baixo para cima, como se Veronika quisesse gritar sufocado por seus algozes), dialogando com o namorado no quarto. Mágoa esta que ficará para o resto de sua existência.
Interessante é como as duas irmãs nunca chegam a se conhecer ou falar, mesmo Veronique tendo ido a Cracóvia. Uma apenas via a outra de longe, enquanto a outra tirava fotos em uma excursão. E dentro desses lances existenciais percebe-se o enigmatismo do realizador. O elo fazia parte somente de um destino.
A aventura da francesa em busca de seu apaixonado admirador é sempre acompanhada por uma delicada câmera que invade sua rotina solitária, quando ela, então, por um acaso, descobre, através dele, o sentido de sua amargura. A história das bailarinas é a história de Veronika e Veronique, contada pelo seu criador, numa analogia perfeita de um roteiro bem orquestrado também por Kieslowski.
E então ela descobre a foto de sua irmã e observa o elo de sua existência. E num quadro genial, o cineasta aproxima os extremos. Do sofrimento e da dor surgem o prazer e o gozo, talvez numa das mais belas e pungentes cenas que vimos nos últimos anos.(Neste parêntesis caberia uma pergunta: será que o sofrimento e o prazer andam juntos assim como o amor e o ódio?). E ela sai do pranto e entra num estágio de êxtase, dando seguimento ao desfecho de um orgasmo delirante.(Principalmente nesta performance, a bela suíça Irène Jacob dá uma verdadeira aula de como deve uma atriz atuar). Do choro ao orgasmo, o paroxismo ardente e evidente.
O final enigmático atesta mais uma camada de significações, aqui acompanhado pela constante musicalidade, com o pressentimento dando conotações em sua obra. Sinalizando a importância desse final, o materialismo e o sensualismo fluem no cinema do autor de Não Amarás. E então Veronique apalpa uma árvore no quintal da casa de seu pai, numa síntese entre esses fatores. A mão dela que toca suavemente e acaricia o tronco da frondosa árvore é um sinal desta síntese mencionada. É como se ela estivesse se vendo num espelho e admirando seu lado sensual materializado.
Logo em seguida a bela música sempre presente, servindo agora de elo de ligação entre seus personagens: o pai e a filha. E, portanto, A Dupla Vida de Veronique termina brilhantemente com o destaque maior para a partitura musical sonorizando nossos felizes ouvidos.
por
benechaves às
09:44