HIROSHIMA MEU AMOR
O cineasta Alain Resnais nasceu em Vannes, na França, em 1922. Começou a carreira fazendo filmes independentes, eram estudos de artistas plásticos como Van Gogh, Max, Gauguin, Picasso e outros. Fez mais de treze longas-metragens e diversos documentários. Numa entrevista sobre a comentada fita, declarou aos jornalistas: "sou obcecado pela morte, pelo tempo que passa, pelo desgaste das coisas".
Pode-se notar, portanto, que seus filmes são exemplos da ruptura com a narrativa clássica, transgredindo as normas pré-estabelecidas. Ou pós-estabelecidas.
Quando foi exibido aqui em Natal pela primeira vez, em 1962, Hiroshima meu amor foi aplaudido e aclamado por todos nós, tido e havido como um filme além das referências cinematográficas, além de uma simples existência. A crítica natalense da época, ainda imberbe, ficara entusiasmada com a grandiosidade da ocasião, pois, não era à toa que, a fita de Alain Resnais (do também grandioso O ano passado em Marienbad, exercício expressionista sobre o tempo e a memória, com roteiro de Alain-Robbe Grillet) aparecia nas listas que fazíamos para indicar esse ou aquele melhor filme do ano.
Elogios, somente elogios, nós, particularmente, também, claro, participando e elegendo Hiroshima meu amor como o maior evento daquele longínquo 1962. Foi uma verdadeira epopéia, quando aquela câmera irrequieta do cineasta desdobrava-se em incursões de um lado para o outro. E fazia os mais sensíveis curvarem-se ante belíssimos ângulos, notadamente quando o seu realizador mostrava um sentimento absoluto entre os dois protagonistas principais.
Era uma época de muitos preconceitos, mas o diretor de Nuit et Brouillard teve a coragem de diluir talvez um amor proibido, visto que a situação dos personagens seria equivalente diante dos olhos de outrem. Ou seja: os dois estavam presos a afetos distantes.
Passados agora mais de quarenta anos, revelou-se que a fita de Resnais, que seria posteriormente conhecido como "o cineasta do tempo e da memória", - para alegria nossa e da turma iniciante/adolescente (sic) - não envelheceu. Pelo contrário, continua a ser, além de um verdadeiro libelo contra a guerra (e aí, parece-nos que a sociedade americana não avançou na conscientização de seus pares, visto a saga belicista continuar devastando inteligências e sensibilidades), um belo hino de paz e amor. Mesmo sem a ostentação e paixão da época inicial e pautado, sobretudo, no amadurecimento crítico.
Baseado em escritos e com roteiro/diálogos de Marguerite Duras - autora que transpõe os problemas da vida contemporânea, analisados depois no campo da patologia social - Hiroshima meu amor, narrando a história que se passa na própria cidade japonesa entre uma atriz francesa e um arquiteto local, entrelaça-se de nuances para surgir paralelamente contra os horrores da hecatombe nuclear.
Deve-se saber, portanto, que a bomba jogada sobre Hiroshima no dia 06 de agosto de 1945 matando dezenas de milhares de pessoas, foi levada a tiracolo pelo avião de nome esquisito Enola Gay, que, desde o fim da guerra, conserva-se na periferia de Washington.(Seria razoável que esses dirigentes americanos fossem ao local de vez em quando e observassem o monstrengo que tanto dano causou ao povo japonês. E se sensibilizassem com a tirania de seus antepassados).
Daí o filme ser uma obra antiamericana por excelência, um grito contra o despotismo e soberania dos que se proclamam poderosos (prática ainda observável e detestável nos tempos atuais).
E é necessariamente nessa lógica que a fita de Resnais aparece sem preconceitos, além de uma padronização qualquer. Portanto, Hiroshima meu amor revela-se nua e crua ao mostrar os efeitos danosos, não somente da guerra em si, mas também de suas ilações e conseqüências.
O romance que surge entre os dois amantes, a evocação nela das lembranças de sua juventude em Nevers, são elos de esperanças, são simbolicamente duas vozes distantes que aparecem para amainar o sofrimento e desespero do povo de Hiroshima. Tais reminiscências marcam profundamente toda a história dos homens e das mulheres, suas conseqüências ou não. Poder-se-ia dizer que é uma película além de um simples sentimento, de uma causa decifrada.
O ser que se diz humano é de difícil entendimento, daí resultando uma natural apreensão quando ele se relaciona com o mesmo ou o sexo oposto. Então diz o homem: "você não viu nada em Hiroshima. Nada...". Ao que a mulher rebate: "vi tudo. Tudo...".
E o desdobramento da fita mostra aspectos dessa natureza, na ambigüidade e certa rivalidade entre o casal, inclusive e principalmente porque o mesmo é preso a um passado obscuro nos seus relacionamentos.
Eles tentam não levar adiante a paixão casual surgida entre cinzas, essa amizade de corpos entrelaçados vistos no início como uma turva e hipotética massa em transformação.
O amor e a guerra são dois pólos distintos. Em ambos existe a possibilidade da separação. No caso do primeiro, seria uma dor intrínseca, endógena, mas recuperável, pois o (a) parceiro (a) poderia voltar ao aconchego anterior. No segundo, não haveria esta chance, seria um padecimento extrínseco, coletivo, exógeno e irreversível. E com um agravante: a mutilação do invólucro humano.
Embora mostrada paralela com o tema amor, a fita do realizador de Providence (1977) nos dá uma visão visceral do absurdo da guerra, enquanto trama e enleva um sentimento também (talvez) impossível. E o arquiteto diz então para sua amada: "em alguns anos, quando a tiver esquecido e outras estórias como esta tiverem acontecido, eu me lembrarei de você como do esquecimento do amor". Daí a incerteza dos dois mundos. O da barbárie intercalado ao do afeto transitório.
Mas, enquanto a genial câmera de Resnais tece a amargura e a dor, nem tudo está perdido, pois ainda resta aquela nesga de esperança, que é justamente a fraternidade e o carinho realçados no relacionamento a dois. Apesar de qualquer contratempo que surja.
Não é em vão que ela o chama de Hiroshima e ele a ela de Nevers, numa alusão extraordinária do roteiro bem elaborado de Marguerite Duras. Aliás, o autor de O ano passado em Marienbad (1961) nos dá um exemplo de como se faz uma obra perfeita.
E então vemos imagens de duração mínima, planos-sequëncias, numa montagem delirante/vibrante acompanhada também de um lirismo e uma narrativa revolucionária, desconexa.(É antológica a longa seqüência de abertura do filme). Era o começo da carreira longa-metragem de Alain Resnais, o début inicial e triunfal de um realizador. A maestria e mestria unificadas.
Incorporado ao movimento da nouvelle-vague, o cineasta de A guerra acabou (1966, realização também de forte impacto marcada pelo feitio próprio e estrutura adequada de seu realizador, aqui utilizando recursos estilísticos louváveis como os flash-forwards, o contrário dos flashbacks, demonstrando o que está por acontecer), desnuda e cria, ao mesmo tempo, uma nova maneira de contar, avivando o realismo poético das belas imagens do filme.
É um poema visual, que alguns afirmam de difícil compreensão, talvez pela fragmentação cronológica e sua linguagem assentada nas agressões de estilo.
E o final ambíguo - pois Marguerite Duras prefere insinuar ou sugerir, deixando hipóteses quanto ao rumo dos personagens que criou, de certo modo plagiados da vida real - exibe um suposto permanente antagonismo entre dois seres, que se amam, amam, mas depois tudo pode se revelar insatisfatório. É a dubiedade de relações opostas, inseridas quando se fala em relacionamentos. A paixão que pode se transformar apenas na lembrança e depois esquecimento.
Hiroshima meu amor é um filme-símbolo, mostrando o quanto o amor deva existir, a juventude deva também permanecer ("Ah!, fui jovem um dia!...", diz ela repassando suas memórias) nas incertezas ou não, pois eles não se comparam jamais com um conflito, esta luta insensata orquestrada para atormentar a mente humana. A guerra que os homens provocam na louca ambição pelo poder e banalidade de seus instintos belicosos.
Enquanto eles estão destruindo o que construíram, a vida segue em frente com nosso apelo pela paz, com o apelo da atriz francesa e seu amante japonês por um mundo de afeição, mesmo que seja efêmero ou proibido. A visão metafísica de Alain Resnais e Marguerite Duras onde se possa também ter a liberdade de ir e vir, expressando-se os sentimentos, desejos, inquietações... E a palavra-chave discutível e já desgastada entre as pessoas: o amor.
É uma fita belíssima, sensual, provocante, que marcou e certamente marca a História do cinema francês, do cinema de um modo abrangente. Um canto ainda para a posteridade...
por
benechaves às
09:40