Antes de o lastimável progresso chegar a Gupiara tive, portanto, a oportunidade de vê-la como a queria ou a imaginava, isto é, talvez desligada de compromissos pisados e repisados, danosas atribulações passadas ou repassadas, rarefeitas e depois feitas. E sentira, evidentemente, uma imensa saudade das paixões que tivera, quase todas perdidas no transcurso daquela minha vidinha de jovem meio buliçoso. Porque em um razoável espaço de tempo eu pude desfrutar de raras beldades numa Gupiara também de amores distintos. Acreditando, contudo, que a felicidade nunca seria eterna restou-me aproveitar os bons períodos desde meu nascimento, um fluir ou refluir vivedouro ou não. Mas, aquela excitação ia aos poucos desaparecendo. E numa breve época depois ela mixaria, passando eu a saborear, apenas, as inquietudes sobressalentes de uma existência.
Durante a fase em que me senti farto pude avaliar o quanto à própria cidade também o era, pois a vi crescer e nascer em uma suposta ingenuidade. E em toda uma plenitude de uma cidade voltada aos interesses maiores da comunidade. Ainda na infância ia com Painhô me deliciar com o despontar de mais um dia, quando madrugávamos à procura do sol que surgia soberano detrás dos morros. Era de uma visão belíssima aquela exterioridade aos nossos sensíveis olhos. Ficávamos encantados com portentoso astro clareando a vida nossa de cada dia. E, particularmente, eu já me sentia reconfortado diante da magnitude escalada. O meu lado infantil afrontava com o adulto de meu progenitor e os dois fecundavam somente em um, que seria a parte oposta do infortúnio.
Dia seguinte fazíamos o itinerário inverso, ou seja, íamos ver o nascimento da lua. E em frente ao satélite da terra, quase ele tocando na minha cabeça e na de Painhô, tínhamos uma espécie de êxtase: a beleza do reflexo da luz solar recebendo os raios lunares reproduzidos. Era a chamada lua cheia, em oposição, claro, ao período da fase escura, que seria a lua nova. Meu pai me ensinou, entre outras experiências, que ainda existiam duas fases distintas: a lua minguante e a crescente. Didaticamente aprendia, ouvia e apreendia, ficando maravilhado com tais passagens cósmicas e ensinamentos de vida. E exclamava peremptório: estamos diante de uma noite purificada!
Lembrei-me também da política (ah, a enganosa política) e o quanto ela era menos maliciosa. Não sei, talvez acreditasse que a cidade ainda engatinhava... Mas, de qualquer maneira, fiquei convencido de que Gupiara vivera dias de menor infelicidade na época de minha infância ou mesmo adolescência. Talvez o ser humano não fosse tão escravo do dinheiro e de seu arbítrio. E sobre o ímpeto de falar em eleições livres, sabia desde cedo que tudo não passava de um engodo. Acho que foi outra lição de Painhô me fazendo conhecer o quanto havia de corrupção nesses caminhos. O poderio econômico falava bem mais alto do que qualquer sentimento de amor e afeto pelo semelhante. Os políticos eram uma farsa. A fantasia da liberdade e a condição primeira de tentar enganar um povo sem vez e voz, sem decisão correta. E os cinismos acrescidos da força da grana dos que manipulavam com o poder. Tenho, acredito, plena convicção de que nenhum governante governa para o povo. Vivemos em uma terra de belas paisagens naturais, uma terra de uma riqueza singular, linda, mas com uma população alarmante vivendo na miséria. E isso para mim seria outra ilusão, uma dolorida ilusão.
ESPAÇO LIVRE
No dia 15 passado a poeta pernambucana Márcia Maia (tábua de mares e mudança de ventos) lançou aqui em Natal o seu livro Em queda livre. Estive presente ao evento. E apanhei um poema para compartilhar hoje com todos vocês:
roteiro adaptado
da janela
te espio a espiar-me
te espiar
ir e vir de olhares e
espelhos
(potência de lentes)
teia que nos ata.
por um instante
distraio-me
e tu
(abandonada a lente)
de mim te aproximas
sorrateiro
rasgando teia e roteiro
e me matas.
por
benechaves às
11:21