O dia 30 de maio (04 dias após o meu aniversário) de 1984 foi muito triste para mim. Perdia naquela manhã o meu pai. O meu Painhô que tantas vezes descrevi aqui nos textos. Fui ainda visitá-lo na Unidade de Terapia Intensiva, mas encontrei-o coberto de fios elétricos pelo corpo inteiro. Ele não via ou ouvia mais nada, não sei. Fiquei paralisado alguns minutos e saí sem esperança alguma. Chorei, chorei muito. Poucas horas depois aconteceu o seu encantamento. O relato a seguir saiu publicado na Tribuna do Norte em 29 de julho do mesmo ano. Espero que todos tenham uma boa leitura.
VIDA À MORTE
Casualmente o viu pela última vez antes de descer o patamar e se dirigir ao consultório médico. Houve um pequeno diálogo de palavras atenciosas naquele rápido encontro. Depois o homem também saiu para suas tarefas rotineiras, ficando no ar um clarão do derradeiro momento em que passaram um pelo outro. E, quando chegou de - noitinha, avisaram que ele, o senhor bondoso e humilde, visto por acaso no começo daquela tarde, sentira-se mal na ante-sala da médica que já o examinara. Depois de um eletrocardiograma em que tudo estava bem ele tivera uma tontura e desfalecera nos braços da profissional.
Fora avisado do acontecido e voou ao lugar indicado. Embora detestasse hospitais, teve de entrar no mesmo. Ficou ainda mais nervoso quando viu um punhado de gente, algumas pessoas chorando, outras simplesmente conversando, adiante terceiros discutindo assuntos alheios. Teve receio, seu corpo tremulou quando soube que se tratava de um caso sério.
Horas e horas se seguiram de angústia e desespero ao se confrontar (e, claro, todos que também se encontravam no local) com a triste realidade. Então vieram notícias sombrias e desenganadoras, metralharam enfim o infeliz anúncio: - O coração não suportou, está morto!
É evidente que naquele momento se acabara mais uma existência, uma singular existência. Seria, porém, verdade o que diziam? Morto? Ou estaria apenas sonhando? Ninguém acreditou na voz rouca e cortante. Houve um burburinho no suposto silencioso hospital...
Era um dia de uma manhã normal, nuvens cobriam pouco a pouco um céu meio azulado, de cor infinda. O irritado cidadão não dormiu naquela noite, somente ficou a chorar não acreditando ainda no irreversível fato e ato. Pensou que talvez pudesse estar vivendo um sonho de olhos abertos. E a vida pareceria ser uma verdadeira utopia, não passava mesmo de um ato violento. Desde o momento da feitura de um ser humano. O prazer vivenciado no instante era delicioso, óbvio, nada se comparava àquele deslumbramento. E quando nascia dali uma vida de raras alegrias e muitos problemas ou tristezas, os culpados éramos todos nós.
Argumentou que o desaparecimento súbito ou não de um ente querido também era outro tipo de brutalidade, fazendo-o, então, entristecer-se de tais ocasiões. E concordou quando um amigo comentou que a morte seria como uma porrada na cara. Ou no estômago. Todos teriam, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar o nefasto episódio. Era apenas uma questão de tempo e sorte. Ou azar. Então, sentiu-se impotente diante de atos impiedosos e desprezíveis, de um verdadeiro conjunto de conseqüências danosas.
Achou, inclusive, que houve displicência no atendimento médico, essas coisas de aparelhos adequados em locais certos, etc., etc. Pra se ter uma leve idéia não existia um balão de oxigênio no consultório, daí todo o embaraço. Contudo, nosso coração é mesmo traiçoeiro, dizia para si, parece uma máquina a enferrujar-se com o tempo. Nada o detém. E tudo agora era tarde, não adiantavam lamentações, disso sabia e repetia. O inevitável estava ali.
O interlocutor falava, andava, procurava um meio de fazer vogar sua inútil luta contra a morte, se juntava a multidão, gritava que vivia num mundo de farsas, de expressões idiomáticas (e também, algumas vezes, idiotas), de malevolências. Desejava uma vivência eterna, terna, aqui na terra, uma vida sem crueldades, ambições inescrupulosas, desprazeres quase irrestritos, um mundo justo. Um mundo onde o Bem sempre superasse o Mal. Embora soubesse que desde os primórdios as coisas já tivessem nascidas erradas, trejeitadas e traspassadas de fanatismos e cobiças. Nada se criou de saudável.
Lógico que há de se convir que aquele cidadão quisesse uma bela existência para todos, talvez uma luta ineficaz, porque se sabia relacionada a uma indeterminável ação vivente. Andou um tanto pela rua deserta, queria ficar sozinho, pensar em algo que pudesse condicionar seus argumentos. E tudo parecia ser em vão, estaria ele perdido nas trevas. Então desabafou: putavida!
Mas, os fatos relatados na sabedoria que lhe era peculiar, na certa se orientariam para se amoldarem aos preceitos do inelutável cidadão. Sofria ele com as mazelas dessa ignóbil vida que não aceitava. Pra que desgraça maior? Ficavam somente os resíduos espalhados no turbulento cotidiano. A morte estava ali, se defrontando e se insurgindo contra todos os presentes ou ausentes. Ela se tornara dona absoluta de nós.
Embora o tempo estivesse normal uma tempestade invadiu lá fora, razão pela qual fez o ilustre homem acordar de um pesadelo. Ou melhor, aceitá-lo com raiva na sua impactante e brutal realidade. Copiou, então, uma idéia genial. E como no melhor da ficção, imitando o bom filme Superman, de Richard Donner, deu vários vôos ao redor da terra e a fez retroceder alguns anos. Era a arte querendo talvez modificar a vida. Conseguiu, com isso, juntar, não somente seu pai, mas, também, os entes queridos. E, então, todos surgiram a cantar e encantar como nos velhos tempos. Seria a sua renúncia dali em diante...
Continuemos neste delírio?
Bené Chaves
por
benechaves às
09:18