Nesse período de vida era gostoso morar em Gupiara, já que a mesma ainda estava imberbe e seus mandatários não tinham, por enquanto, vale ressaltar, a ganância nela e dela como uma metrópole. Ou, então, a gente, talvez, dentro de uma visão natural e ingênua não enxergasse se havia alguma estranheza qualquer. Quem sabe estivessem programando algo para o futuro? Mas, de todo modo, Gupiara era pacata e nós gostávamos do seu jeito de ser. Podia-se, o que era melhor, ir para o lugar que se quisesse sem sermos importunados. Nesta linhagem ela oferecia uma total despreocupação quanto a assaltos ou roubos. E era uma particularidade que se fazia notar. Lógico que eu adorava aqueles momentos vividos na intimidade da mesma. Não deixava de ser também um agrado poder respirar o ar quase puro da cidade.
Como morava em frente a um cinema tinha a facilidade de assistir bons e ruins filmes, ainda menino de calça curta a me deleitar nas incertezas de uma existência. Nasci e cresci praticamente nos arredores e circunvizinhanças do prédio onde se alojava o cine Rio Grande, hoje apenas um monstrengo a me deixar saudade toda vez que passo pela sua larga calçada. Dentro do mesmo deve atualmente habitar insetos e teias de aranha numa promiscuidade sem limites, as suas cadeiras desconfortáveis empanturradas de dejetos. Quase sempre estava lá na sala de projeções procurando inteirar-me dos assuntos cinematográficos, aprender e apreender os labirintos daquela nova arte para mim. E algo que dali surgisse. Lembro-me, então, como parte ilustrativa, de um excêntrico filme: a temática girava em torno de mulheres sendo exploradas no serviço árduo da colheita do algodão. E quando um jovem chegava e literalmente transformava o lugar, a atriz em questão, Kim Novak (e não poderia ser outra, claro), apaixonava-se pelo desconhecido. E logo ele se juntava ao trabalho de cunho social ali desenvolvido, o único varão na recente empreitada.
Porém, o mais surpreendente, contudo, fora a maneira como vi tal fita. Não sei a razão, mas a mesma tinha cores diversas, ou seja, uma bonita fotografia em preto-e-branco e uma bela visão colorida. Enquanto as mulheres suavam no trabalho diário (e aí a atriz surgia em todo seu esplendor, com um vestido colado no corpo a delinear com extremo apetite o formato do mesmo), o filme aparecia em preto-e-branco. E quando o nômade jovem surgia encantando o velho vilarejo, inclusive, e com toda certeza, a bela atriz, um bonito colorido invadia a telona. Não sei... Acredito que a divisão de cores chocou os menos avisados. Pareciam ser instantes de um delírio meio surrealista. No final, tudo saiu a contento. O embate corajoso do sexo feminino e do problema social unido à forte paixão dos dois personagens.
As únicas novidades do inusitado filme ficaram mesmo na fotografia já mencionada e na disposição (e que disposição!) da belíssima mulher. Dois feitos pomposos para os espectadores da época, espantados que ficaram com tais mesclagens. E na beleza singular de nossa heroína o que me interessou foram as partes físicas da mesma. Ah!, aquelas pernas e coxas... O delgado rosto à minha frente... Nunca iria esquecer. Pude, por conseguinte, imaginá-la em detalhes e intimidades porque tivera este sonho quando decidira ir ao cinema próximo de minha casa a arremessar-me na poltrona enfadado dos estudos na noite anterior. Então, quando acordei, atabalhoado, me vi sozinho no recinto contemplando uma grande tela com suas cortinas já fechadas. E fiquei triste diante de uma realidade em contraposição com a imagem lúdica de um alumbramento.
ESPAÇO LIVRE
Compartilho hoje de um poema do Eduardo Gosson (agitador cultural e responsável por um 'sarau poético' numa das livrarias da cidade), que lançará brevemente o livro Poemas das Impossibilidades. Ei-lo, portanto:
Do poema (I)
Poema
- antipoema
Do poema (II)
O poema não poderá anunciar-se
mataram
a aurora
o amor
e os anjos caídos
- hoje o poema se exila!
por
benechaves às
11:32