Além de Gupiara estar crescendo aos solavancos e deixando pobre sua paisagem, a fascinante Kim Novak também ia aos poucos fugindo de meus sonhos. Acho que se desfigurava ano após ano (como todos nós, a velhice a bater diariamente na nossa porta) daquela imagem jovem e de traços perfeitos que cediam, para minha tristeza, lugar a um quase arcabouço de mulher. (Lembro-me aqui do último filme em que a vi participar, fazendo, já envelhecida, na vida real, o papel de uma doente, na vida irreal. Não sei, creio que a mesma não deveria ter aceitado tal personagem. A fita me causou profunda melancolia, pois acredito aí que a arte imitava também a vida. E ela deixou-se levar pelos desestímulos, o tempo a corroer seus atrativos físicos). Daí, então, duas terríveis angústias tomaram conta de mim: o envelhecimento da outrora bela atriz, assim como, em uma situação parecida, o perverso progresso e os danosos efeitos da também outrora e pacata Gupiara. Era um vexame duplo que tive de lamentar e suportar. Embora em contraposições, os dois acontecimentos seriam conseqüências ditadas pelo transcorrer de uma existência.
Mas, o pior de tudo, claro, seria o passar e remexer dos anos. E com ele a amargura trazida, quando enxerguei os dois fatos que talvez nunca imaginasse acontecer. Lógico que na minha utopia de ainda menino quase ingênuo e adolescente, na doce intenção de jamais olhar para um futuro que se avizinhasse sombrio. Supunha que nada do bonito e simples que via iria, em largos pisoteados, se transformar em algo feioso. Porém, as coisas belas, com o transcurso dos períodos, grosseira e fatalmente, se metamorfoseavam em coisas feras. Não sabia por que tudo era assim, sabia apenas que as ocorrências seriam esmagadas pela insensibilidade do universo e pela imprudência do ser (dito) humano. A atriz não teria mais a imagem anterior, a beleza ia sumindo, ia enrugando. Difícil acreditar no desagradável fato. E fiquei perplexo diante de um novo, mas velho corpo. Decerto que também me desiludi com Gupiara. Ela existiu com certo entusiasmo antes, existe com temor no momento e existirá com saudade em um futuro próximo. Passado, presente e futuro se diluíam ante uma gradualidade opressora.
Lembro que naquela época ia com amigos a um bar perto da praia e de lá saíamos alcoolizados a perambular junto ao mar. Ninguém nos incomodava. E depois de algumas horas dormíamos ali mesmo na areia úmida, as ondas inocentes a fazer carícias e cócegas em nossos pés. Ou então, tempos atrás, passar descontraído, com um grupo pequeno, de casa em casa a fazer as desejadas serestas para as mocinhas da cidade. Vez ou outra éramos molestados pelas vizinhanças ou pais das mesmas a ficarem dizendo impropérios e também a jogarem água fria nas nossas cabeças quentes. Pior seria se acontecesse o contrário, evidente que sim. Mas, afora tais questiúnculas mesquinhas, as meninas-moças (ou nem tão moças assim) adoravam o som melodioso das cantigas ensaiadas. E as mais afoitas arriscavam uma olhadela, ludibriando seus progenitores, para tentar reconhecer os donos da romântica empreitada.
Era a Gupiara de nosso período, uma cidade inocente ou aparentemente inocente. Tomaram-na de nossas mãos e desígnios honestos e fizeram que a própria fosse desonrando seus iniciais sentimentos. Os profundos afetos perdidos ao longo de uma existência, de uma vida que se imaginasse sadia, sossegada. Dali em diante, já na minha fase da pós-adolescência e adulta, passei a enxergá-la com enorme desconfiança. Uma desconfiança de quem a quisesse vê-la sempre modesta, sincera e, sobretudo, não alheia aos compromissos da virtuosidade. Foram, portanto, duas ilusões a mais e dois fatos de estar a menos. Apre!
ESPAÇO LIVRE
MADRUGADA
Águas
frias
areias
orvalhadas
e tu
companheira
morena
loira
ruiva
faceira, ao
meu encontro.
Nossos sexos se
tocam em brasa, as
gaivotas esvoaçando
no mar e no ar.
E o oceano a gozar
nossa intimidade.
Bené Chaves
por
benechaves às
16:49