DOIS PERSONAGENS
Verdade que amanhecera um pouco indisposto e mesmo chateado. Levantara-me e dirigira-me ao banheiro, estava com a cabeça parecia fogo. Não dormira bem, tivera um sonho estranho e inquietador. Lembro-me dele: existiam poucas pessoas no mundo. A civilização parecia se integrar quase toda de animais. Eram bichos de diversas qualidades habitando nosso planeta. Evidente que me perturbara com tal visão, sem saber, lógico, que estava sonhando. Mas, entrei no chuveiro e tomei um banho frio, antes fazendo minhas necessidades fisiológicas. Acredito que milhões de seres humanos (ou não) faziam o mesmo naquela hora. Homens, mulheres, crianças, homossexuais, hermafroditas, quase todos deveriam estar com a bexiga cheia àquele horário. Para mim, até acordar com o pesadelo, a vida estava morta. E também acordavam para os prazeres ou desprezares de uma existência. Uns para a falsidade, mentira, hipocrisia. Outros para a verdade, honestidade, apreço. Era a vida no seu dueto de valores. Cada um seguindo o caminho que achasse melhor para si. Uma espécie de rivalidade entre o Bem e o Mal.
Sei que tomara um pileque na noite anterior e resfolegava depois de uma ressaca braba. O certo é que não estava nada bem. Ou não seria o inverso? Minha cabeça confundia-se e via objetos rolarem dentro dela. Sentia também uma tontura de cair. E achei que seria melhor voltar para a cama. Então, dormi de súbito. Horas e mais horas... O sonho voltara com fervor, movendo-se dentro de mim. Diante da imposição, resolvi sonhar. E vi logo que aqueles animais se devoravam uns aos outros. Era uma peleja em que destruíam, além de seus semelhantes, o bem e o saber, a justiça e a verdade. Comiam palavra por palavra. Aí eu me inquietava, às vezes acordando e outras me deixando absorver pelo pesadelo. Ele parecia querer me abocanhar.
Mas, depois de um período longo, já não sonhava. Notei uma vasta nuvem escura pela janela que ficara aberta. Fechei os olhos e também, misteriosamente, a vi. Abri-me de pavor. Alguém, então, disse: meu rapaz, a vida é uma seqüência, todos nós fazemos uma peça, cada um que se vire melhor. Rebati: quem está falando? Houve um silêncio e observei aquela mesma nuvem jogar alguns animais ao chão, distanciando-se num vulto pequeno. Eram três horas da manhã quando olhei com nervosismo para o relógio. O céu se encheu de estrelas. Não existia uma só nuvem ao redor. Joguei-me na cama e dormi com medo.
O dia amanheceu bem claro, as pessoas pareciam amareladas, em cada face se sentia uma incerteza. Todas eram inconscientemente mecânicas, automáticas, como um ímã sem controle. Eu também teria de agir de duas maneiras, vivia duas personalidades. Saí e passei em frente a um cinema. Estava lá escrito no cartaz: Dois Personagens, uma fita com atores desconhecidos. Interessante é que a mesma falava num tal sujeito que vira animais caindo de uma massa escura sobrevoando o espaço. Desvie-me e decidi parar na casa de um amigo. Porém o sonho ainda me incomodava, queria apossar-se de mim. Flutuava na ambigüidade de vozes e inquietações. Fui embora numa correria desordenada.
Era noite e o universo incandescia, a lua estava cheia de uma iluminação cinzenta e de um aspecto meio triste. De repente senti pavor e o frio surgiu a espetar-me o corpo. Então o tempo começou a mudar. Seria a tal nuvem? Ouvi um sussurro e uma barulheira iguais a machadadas no tronco de uma árvore. Arrepiei-me mais ainda, pois uma massa negra pareceu dominar os impulsos de uma madrugada. Falava temeroso: quem está aí, algo fictício? A interrogação me deixou perplexo. E ela, aquela terrível nuvem negra, foi desaparecendo para alívio meu. Finalzinho da madrugada.
Torci, portanto, para que os fatos acontecidos fossem verdade. Porém, deveria estar sonhando.Mas, no sonho não vi nenhuma nuvem, apenas animais. Com certeza seriam duas personalidades que se avizinharam. Então batuquei: existiria alguma analogia entre meu sonho e minha realidade? Fui para casa e cheguei já com o sol raiando.
por
benechaves às
11:56