JOGO DE PALAVRAS
Amanhecera! Tudo estava azul ao meu lado. A cama que dormíamos ficara totalmente desarrumada. Amanhecerá e não sairei da mesma, pensei dois minutos antes. Então, amanhã será um belo dia, disse com um sorriso nos lábios. Fui à janela e abri as cortinas. Caía uma chuva intensa. Vamos ficar na cama o dia inteiro?, convidou-me a suave voz ao meu lado. Oh, não posso, tenho de resolver outros assuntos. Mande tudo pro diabo e venha pra cá - e, de súbito, aquela bela mulher abriu as pernas e puxou-me pro seu lado. Chegue... Deite aqui... Apaguei a luz e obedeci ao apelo da parceira. E, então, fizemos amor ao som de uma água que parecia desmoronar em nossas cabeças. Ouvindo o respingar a molhar a pequena janela do quarto, ficamos deitados durante horas seguidas.
Ah!, hoje sim, amanhecera um sol forte, seguro, dono de si. Teria de aproveitar o dia. Saí e fui embora, deixando minha companheira dormindo num resmungar feliz. Caminhei quilômetros até o ponto determinado e escolhido. Estava exausto. Um muro enorme surgiu na minha frente e no alto uma senhora mediana brincava com passarinhos domesticados soltando-me piscadelas. Lá no fundo um homem acenava para mim. O ambiente me pareceu despótico e duvidoso. Gritei: vim atender uns pedidos, buscar soluções. Mas, o cidadão aproximou-se e olhou com cara de raiva. Tinha um charuto nos largos beiços. Disse-me: por que você não fez o que era pra ser feito? Respondi que não devia e levei um bruto murro no rosto chega o sangue espirrou. Caí e fiquei estirado feito roupa de quarar.
Amanhecerá outro dia e nada do pessoal, estou ficando nervoso, ouvi quando disseram. O dia tinha acordado nublado, nem chuva e nem sol. Os dois olhavam-se entre si e balançavam suas cabeças. Amanhã será o dia decisivo, não esperamos mais. O danado é que teria de ficar ali naquele chão emporcalhado... Porém anoitecera e a lua já saía de dentro das nuvens, embora sem o brilho de uma noite de verão. As estrelas se contavam no céu opalescente. Anoitecerá e ninguém irá dormir, sentenciou o homem do charuto. O relógio da parede abanava quatro horas. Angustiantes. Amanhecera, no entanto, o último prazo dado. E amanhã será, lógico, o dia determinado. Com toda certeza amanheceria de cara inchada, talvez até morto.
A lua escurecia e clareava, às vezes imaginava que ela estivesse brincando de esconde-esconde com as nuvens. Virei-me e vi a figura do homem baixinho ao lado da mulher que piscava. O que o senhor faz aí?, perguntou a voz de charuto na mão. Vá pro seu lugar, concluiu a dos passarinhos. Disse desesperado não saber mais o que fazer, não entendia nada, estava alarmado e fui dormir.
Outro dia surgiu e o caminho se tornou visível. Levantou uma poeira na terra úmida e alguns homens esbarraram seus cavalos. Senti o odor como um pressentimento de algo ruim. Desceram e o da frente pronunciou-se: não fizeram o serviço que deveria ser feito? O sol saía e batia fraco sobre as montanhas, apenas pingava uma garoa fina e doentia. Enfrentei-os: sou inocente, de nada sei, deixe-me explicar...Quero justiça!
Mas, os homens abaixaram as cabeças e silenciaram. Eles também não sabiam de nada, faziam somente parte de um jogo. E ditei, então, meu destino: amanhecerei rasgado, chicoteado, passarão e pisarão minha cabeça, o sol não brilhará, anoitecerá, então a noite será triste e infeliz, porque amanhã serei um homem morto. Amanheceria uma placa de sangue, porém, amanhã seria, obviamente, um novo dia. Talvez um dia em que depois daquele jogo também de palavras os passarinhos não seriam mais domesticados e poderiam voar livres para onde bem quisessem. Lá atrás, somente, a grande casa azul e um silêncio que se escutava no ar.
por
benechaves às
10:40