Soninha foi minha primeira namorada entre a adolescência e intermediações da pós-adolescência, um tempo e outro de nossa inicial vida, época em que você já despertou para a sexualidade, o inolvidável. Quando a gente terminava um namoro quase imediatamente começava outro, nas agitações mesmo da idade. E nem me lembro das que cobiçei qual a que ficou mais no meu íntimo, uma paixão que nunca passa, quase um amor e sempre aquela saudade a voltar na nossa imaginação. Conheci Soninha por um acaso, talvez numa dessas surpresas e coincidências deste pequeno grande mundo. Já era moça-feita, quer dizer, mulher-mulher, como se diz. Avistei-a quando estava em um bar sozinho a contemplar uma paisagem que se afigurava meio sombria. E, então, aquela encantadora desconhecida passou perto de mim e rebolou seus quadris com uma certa volúpia. Claro que seu gesto impetuoso despertou minha atenção e talvez ela mesma o tenha feito na medida exata de um desafio. E a insinuante atitude de Soninha me deixou aceso, nascendo dali uma futura aproximação. Fiz, logo em seguida, meu contato de rapaz meio enxerido do período e joguei a lábia característica para tentar conquistá-la.
O encontro foi proveitoso e ficamos depois amigos, quando pude avaliar posteriormente que aquela moça-feita era uma pessoa maravilhosa, tanto no aspecto físico como também no intelectual. Mas, contou-me um caso triste que acontecera consigo ainda na puberdade. Com lágrimas nos olhos disse-me que um sujeito aproximou-se dela e... Atacou-me, violentou meu jovem corpo dentro de um matagal horrível, contou em prantos. Eu era uma pessoa imatura, claro que sim e fiquei com um trauma depois do ato violento daquele insano, desabafou inquieta. E completou, já um pouco aliviada: restaram as marcas de uma brutalidade sem razão de ser. São fatos, coisas da vida, devem existir milhões desses tipos rondando suas vítimas, ultimou como palavra final.
Tal resignação fez que eu entendesse que Soninha conhecia (apesar de ainda jovem) as marotagens e ferezas, por que não dizer, feiúras desta vida. Sabia que ela, a existência, poderia ter nascido de um enorme tumor, levando-se em consideração evidências anteriores, mormente quando se conhecia que o mal predominava em detrimento do bem. E a minha amiga, já um pouco sofrida, tinha plena consciência dos feitos enraizados desde tempos ínfimos e infindos. Sentenciou e interrogou para si mesma: seria um mundo embrutecido? Respondeu também para si: não sei, mas talvez uma grande névoa tenha se formado no seu interior e, ele, o mundo, azougou-se indefinivelmente.
Soninha era uma delícia de criatura, sabida, inteligente ao extremo, gostava de estudar e lia com certa assiduidade, apreciando fatos saudáveis e detestando as safadezas. Teria sido uma ironia do destino a tal barbárie que lhe aconteceu? Contou-me que a grande virtude do ser humano é a humildade, mesmo partindo de figuras as mais importantes e poderosas. Ou aquelas que apenas pensavam em sê-las... Porém, dizia-me: infelizmente testemunho o contrário, o que se constitui numa lástima para todos nós. Sendo uma mulher irrequieta, temperamental, dizia-se independente e disposta a lutar pelos direitos, não somente dela, mas dos cidadãos em geral. Lembrou-me, um pouco, a Rosilda, aquela que saía de dentro do mar com um biquíni amarelo a mostrar partes bem delineadas de seu belo corpo. Entre ela e Soninha não sei quem transgredia com maior intensidade as normas de uma sociedade pautada em costumes conservadores.
ESPAÇO LIVRE
Novamente aqui um poema do amigo e poeta Horácio Paiva (RN), que faz parte de seu livro Navio entre Espadas:
CAFÉ DA MANHÃ
"De toda a memória somente vale
o dom esclarecido de evocar os sonhos."
(Antonio Machado)
Muito havia a conquistar -
e quase tudo fora conquistado.
No meio do caminho, afinal, indago:
O que, ao tumulto, sobreviveu?
O que esperar dos despojos
dos dias infinitos?
- Nada.
Mas, enfim, posso pisar na serpente,
agora morta,
e tomar o meu café da manhã,
serenamente.
por
benechaves às
10:00