UMA vez tive um sonho estranho: estando sozinho neste mundo áspero e rude, não pude deixar de o retalhar, golpeando-o em partes iguais. Permanecia sedicioso em querer mudar aquele inferno. Olhava em frente e via o trajeto repartido em não sei quantas divisões. Cheguei a me assustar, juro. Atravessei enormes desfiladeiros e pegando um atalho, parecia fugir, como em filmes de faroeste, de grande quantidade de índios. Intrincado e emaranhado, o solo ficou secarrão.
Claro que não estava acostumado com essas andanças, a bem dizer talvez fosse a primeira vez que saía de casa. Mundão matuto esse, tudo no desprimor. Então, tardinha, eu vinha vindo tardo para me achegar no lugarejo. O que não gosto nem de contar. Mas, houve uma espécie de explosão e gente muita havia morrido. Tudo tomado nas devidas apropriações, com queimação, saque... haviam desmandado. E fiquei ardendo em chamas.
Quando minha mãe me acordou, estava lá eu no escuro a debater contra o próprio travesseiro, parecia mesmo evidenciar tais episódios. Passou, repassou e ficaram somente as distâncias. E até o presente momento não entendi a razão daquela seqüência de imagens. Talvez fenômenos psíquicos postos involuntariamente.
VEZ ou outra Painhô lia no sofá um livro de historinhas que ele conservava na estante. Dizia: esse capítulo é ótimo, tem cada piada...Dobrei, então, a folha e ele começou a ler, parando na metade. Vi seus pêlos do braço eriçarem e os cabelos logo arrepiarem, parecendo mais uma vassoura em uso. Na verdade, ele puxou o livro com força e não leu mais nada. Falou que os relatos eram meio obscenos e foi guardar o dito compêndio ou coisa parecida. Deve ter escondido entre as traças da velha estante. Mas, algum dia ainda irei testemunhar suas páginas.
Depois encontrei meu pai na rede nova relembrando os dias que passava na fazenda, quando dizia que remoçava dezenas de anos. E concluí que se ele morasse lá talvez nunca fosse envelhecer, mesmo com o reforço da palavra. Vê como era o vaqueiro de meu avô, moço, moço, disposição de bicho, carinha de menino. E ali mesmo ele dormiu uma soneca, era hábito a sesta de Painhô depois do almoço.
XIXI eu ainda fazia no berço. Como não existiam fraldas descartáveis, sobrou mesmo pra Tia Chica que lavava uma a uma aquelas intermináveis de tecidos de algodão. E tinha, claro, que suprir minhas necessidades fisiológicas. Ficava ali sem fazer nada, a espera de uma mão bondosa que viesse trocar a velha urina escorrendo nas minhas finas pernas. Que cuidassem de mim, pois! Afinal de contas, não tenho culpa dos acontecimentos. Se existe alguém responsável aí, deve-se aos meus pais que resolveram fazer amor e então nasci. Isto é mais do que evidente e todos devem pensar assim, inclusive eu, que sou parte interessada. E digo mais: de uma certa maneira, Painhô e Mainhô também não tiveram lá a culpa toda, pois já são frutos de outros amores. Partindo dessa premissa, todos têm sua parcela de uma forma ou outra. Não irei, acho, desabrochar uma vida quando estiver de colóquios amorosos com uma mulher?
Nesse ponto, sou responsável também. Ou irresponsável?
ESPAÇO LIVRE
MELHORES FILMES QUE VI EM 2004
1) Dogville (Lars von Trier, 2003)
2) As Invasões Bárbaras (Denys Arcand, 2003)
3) Gosto de Cereja (Abbas Kiarostami, 1997)
4) Moloch ( Aleksander Sokurov, 1999)
5) As Horas (Stephen Daldry, 2002)
6) Uma Passagem para a Vida (Patrice Leconte, 2001)
7) Moça com Brinco de Pérola (Peter Webber, 2003)
8) A Humanidade (Bruno Dumont, 1999)
9) O Vento nos Levará (Abbas Kiarostami, 1999)
10) Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2002)
11) Sobre Meninos e Lobos (Clint Eastwood, 2003)
12) Secretária (Steven Shainberg, 2002)
13) Encontros e Desencontros (Sofia Coppola, 2004)
14) Estrada para Perdição (Sam Mendes, 2002)
15) Código Desconhecido (Michael Haneke, 2000)
16) Peixe Grande (Tim Burton, 2003)
17) A Má Educação (Pedro Almodóvar, 2004)
18) Adeus, Lênin (Wolfgang Becker, 2003)
19) Dirigindo no Escuro (Woody Allen, 2002)
Bené Chaves
por
benechaves às
10:23