QUANDO meu pai me levava a passear, eu sempre pedia pra entrar numa daquelas salas de cinema. Ali ele subia comigo e conseguia ? através da amizade com o projecionista ? me mostrar uma enorme máquina de rolos gigantescos a girar ininterrupta. Então discutia com o homenzinho sobre assuntos que eu nada entendia e metia o olho direito num daqueles buracos, enquanto gesticulava mandando que examinasse uma luminosidade retangular na minha frente.
Parece-me que exibiam um seriado desses que obrigavam você a acompanhar toda semana. E eu me entusiasmava tanto que ficaria o dia todo na observação não fosse o próprio sujeito a me lembrar que teria de sair. Sabia, isso sim, que era gostoso o suspense de um filme para o posterior, vendo-me depois na expectativa de nova espiada na aparelhagem cinematográfica. Fui daí, então, me interessando pela continuação da fita e sempre fugia pra assistir os seriados com a ajuda do amigo de Painhô.
REGISTREI, desde cedo, em meu diário, que não tinha quase esperanças com esse mundo que aí está, talvez fosse preciso muitas transformações. De qualquer maneira apenas tento colocar e, se possível, corrigir fatos danosos que marcam irregularidades absurdas nesta nossa vivência. Então, a lamentação é freqüente à insensibilidade do ser dito humano. E dei, portanto, o veredicto simples, porém implacável: meus olhos viam, desde criança, uma humanidade bestificada.
Quando ficar adulto e sentir atrações externas, sentimentos próprios ao meu corpo jovem, farei o que for possível para tudo se transformar como uma flor desabrochada em plena madrugada.
SÚBITO lembro de um episódio: ainda no ventre de Mainhô vi uma infinita escuridão acercar-se, pensando depois e batucando sobre a causa e efeito de ruídos estranhos, labirintos inatingíveis e cores diversas em constantes combates. Fios corriam dispersos, atingiam meu cérebro, deslocavam-se em círculos e incomodavam o corpo inteiro. Mas, depois tudo passou e me vi livre de misteriosa e azucrinante coação. Foi um sufoco que deixou tonto um bom período o feto que ainda estava em estrutura de se desenvolver.
TODOS viram (ou quase) naquele menino um ser talvez destemido e disposto a enfrentar situações que a vida iria impor, marco de uma determinação. Pressenti o acontecido e fiquei boquiaberto ao saber da extravagância e fecundidade do problema. Mainhô e Painhô saíram a gritar de contentamento e felicidade, o oposto do que senti quando soube que iria nascer. Já tinha dito: não era o que desejava. Não queria assistir o que o mundo parecia programar ante meus (e talvez seus) frágeis olhos: o sofrimento da grande maioria das pessoas. E observei-o e ainda observo-o assombrado e temeroso.
ESPAÇO LIVRE
CANTO À INOCÊNCIA
Eu não pedi o mundo desse jeito para mim
não queria a guerra, apenas a paz
não pedi rivalidades entre os seres
somente concórdia e não poderes.
Não queria que a corrupção dominasse
a hipocrisia e falsidade se alastrasse.
Pedi justiça e não sabida esperteza
também uma simples e plena justeza.
Não, não imaginei o mundo assim...
queria sim, que ele não fosse ruim
que a poderosa e sempre disputada grana
não matasse os ditos humanos entre si
e a violência / fome acabasse para ti.
Não queria tampouco a velhice chegando
a gente, então, alcançando o triste fim
e a morte como um pesadelo enfim.
Não, não pensei que o mundo fosse...
nem para todos e, claro, nem para mim.
Um universo aparentemente belo
mas paradoxalmente não serafim.
Desejava outro mundo de amor
sem qualquer insuportável dor.
Bené Chaves
por
benechaves às
20:43