AFINAL, eu nasci. Demorei sim, mas surgi, talvez já tivesse incomodando Mainhô dentro de sua barriga. Se bem que depois, parece-me, os embaraços vêm em maiores inquietações. Cheguei sob influências simples. Nada do sonho extravagante de Painhô. Nada de sangue azul. Nem o florir de belas flores. Era sangue vermelho mesmo, igual a todo mundo. Nasci muito a contragosto, mas tive de nascer. Claro que eu preferiria ter ficado no ventre de Mainhô. Como não tive opção, o jeito foi ser retirado pela alegre parteira.
Achei que este mundo não serviria para mim, era um mundo de feridas. Feridas expostas e não cicatrizadas. Um mundo de falsidades e hipocrisias, falso-moralista. E também de incompreensões e decepções. Portanto, eis-me aqui para tentar enfrentar suas mazelas ou questionamentos ambíguos.
BEM que tinha dito: ainda moro numa fazenda, ou melhor, passo alguns dias naquele recanto agradável. O cheiro de vacaria me fazia sentir um cheiro de terra firme, molhada, terra de futuras colheitas. Mainhô é que sempre tapava o nariz quando subia no ar o odor de bosta mesmo, das vacas que sempre pastavam despejando entre as pernas o adubo de suas entranhas. E Painhô sempre metido que estava a tirar leite enquanto a pobre vaca dava uma mijada daquelas. Arre, arre! Tirava leite até altas horas da noite, quase não ia dormir. Vida boa aquela, ar puro, cristalino. Mundão aberto, cheiroso. Pena que a permanência durasse pouco tempo.
COMO entrei num colégio de padres não sei bem, mas o certo é que estudei semi-interno. Época boa, sem muitos interesses. O ruim era durar o tempo inteiro trancado. Tornei-me, então, uma pessoa susceptível e sensível. Quando o almoço era servido eu destampava o protetor e estavam lá as moscas servindo de tempero pro feijão. Enjoava aquilo tudo e ficava mais um dia de fome. No recreio não me divertia com a barriga roncando, fazia que jogava bola e fugia pra cima das mangueiras a chupar mangas espada e rosa. E depois voltava palitando os dentes com a língua.
À tarde, os deveres, os insuportáveis deveres. Enquanto a obrigação não saísse correta, eu ficava mofando ali na sala quente e olhando apenas paredes brancas e janelas sujas. Ufa!, como era chato aquilo. Dava vontade de abandonar e fugir para novos ares.
DEI pra falar logo pequenininho, talvez uma precocidade advinda de ancestralidades, sei lá. Já balbuciava algumas palavras incorretas, claro, mas com o sentido voltado para a sua significação. Acho que Painhô deve ter começado a dizer algo desde cedo, não duvido nada disso. Talvez até soletrado algumas cantorias e arquivadas no diminuto cérebro. As suas célebres emboladas já deviam há muito tempo estar em formação embrionária naquela pequena cachola. Nada se podia duvidar de Painhô. E era quase certo que herdara tudo, pois o que é de bom ou ruim vem sempre de nossas raízes.
ESPAÇO LIVRE
NASCER
Na aurora lembrada vi o frágil início
a menina pobre brincando no lixo
com um papel sujo fazendo rabisco
o menino com um inocente punhal
despertando assim futuro vendaval.
Vi o sol crescendo dentre os morros
a lua dormindo ingênua no universo
os madrugadores no vicioso progresso.
Vi o sublime mar revoltado na encosta
a cidade acordando presa ao tumulto
no primeiro e paradoxal último insulto.
Vi também lutas tolas e desprezíveis
o roubo, a droga e o mal dominando
tudo isso ao mero acaso chegando
e nossa vida, enfim, desmoronando.
Não vi a mulher bela, mas esquisita
pois não me acolheu na conquista.
Enfim, vi uma cidade feia surgindo
ante nossos olhos ainda dormindo.
No prólogo eu vi os amanheceres
no epílogo não vi os anoiteceres.
Bené Chaves
por
benechaves às
18:47